A casa continua caindo. Ao menos cada vez mais pessoas assim o percebem e o 'melhor programa de AIDS do mundo' está cada vez mais longe de ser uma unanimidade. Parabéns, Goerge Gouvea.
BN
Descrição da imagem: sobradão branco tombado para o lado por força de alguma catástrofe natural, similar à catástrofe humanitária causada pela AIDS até hoje...
Presidente do Grupo Pela Vidda, referência no Estado do Rio no
atendimento a pessoas com o HIV, o psicanalista George Gouvea vem
denunciando as falhas do programa DST/Aids do Ministério da Saúde. Para
ele, o Brasil vive uma “epidemia descontrolada”, ao contrário da palavra
oficial do Ministério que reafirma controle da doença.
Os números oficiais dão essa certeza ao presidente do Pela Vidda. Nos
últimos dez anos, pelo menos 102 mil soropositivos morreram no país e
311 mil novos casos foram notificados (dados consolidados até 2010).
Apesar de os números anuais não sofrerem grandes variações (média de 11
mil mortes e 34 mil novos casos por ano), Gouvea critica o uso do termo
"estabilidade" para classificar os números no Brasil. "Seria o mesmo que
considerar 10 mil mortes de judeus por ano no holocausto um número
estável", diz.
Em recente publicação, a Fiocruz, órgão do Governo Federal, pediu uma
"correção de rumo" para o programa DST/Aids no país. "Ao contrário do
que se tem observado em outros países que também instituíram programas
de acesso universal ao tratamento e têm observado queda na incidência de
novas infecções, o Brasil não tem conseguido diminuir a incidência do
HIV/Aids", aponta o documento.
Para o presidente da ONG, campanhas de prevenção a Aids devem contar
com a participação do público-alvo para a obtenção de resultados
positivos.“Não tem como eu ir para uma esquina falar com uma travesti
sobre prevenção, a travesti vai rir da minha cara e tem toda a razão de
fazer isso”. O Grupo Pela Vidda atende cerca de 300 pessoas por mês e
realiza assistência jurídica, reuniões de acolhimento e palestras, entre
outras atividades.
UOL - Por que você afirma que vivemos uma “epidemia descontrolada” de Aids no país?
George Gouvea - A gente não pode admitir que existam aproximadamente 35
mil novos casos de infecção pelo vírus HIV por ano. Em dados apurados
em 10 anos, até 2010, a gente vai encontrar quase 350 mil novos casos de
pessoas se descobrindo soropositivas. Eu não sei que estabilidade é
essa. É a estabilidade da vergonha. A gente não pode se acomodar e achar
que 35 mil novos casos por ano são poucos casos. A gente não pode achar
que quase 12 mil óbitos por ano seja um número interessante. Que
estabilidade é essa que o governo, que o ministério da saúde diz. É a
estabilidade da morte?
UOL - O que está errado no programa DST/Aids?
Gouvea - Muita coisa está errada. Nós temos um bom programa de Aids,
ninguém pode dizer o contrário. A distribuição de retrovirais como
política pública de saúde é realmente um marco, a gente não pode deixar
de reconhecer. Mas não pode ser só isso. Não se pode apenas
disponibilizar o remédio na boca da farmácia e dizer tchau, até logo. É
preciso a criação de programas permanentes de prevenção, políticas,
estratégias, esclarecimentos, tudo isso junto com a sociedade. Não é
possível que a gente ouça a palavra Aids quando chega o verão e durante o
Carnaval. É preciso se falar de Aids durante o ano todo, todos os dias.
Eu deveria entrar no metrô e ver todos os dias um pôster falando de
HIV. As crianças e os jovens precisam entrar nas escolas e ouvir sobre
HIV. Eu fico imaginando a quantidade de pessoas que sequer ouvem a
palavra Aids por meses. O assunto HIV deveria fazer parte do cotidiano
da sociedade. O governo tem parcela de responsabilidade porque ele é um
incentivador. Obviamente não pode fazer tudo, mas tem um papel de
fomentar de provocar, de instigar e isso não está sendo feito.
Não
é possível que a gente ouça a palavra Aids quando chega o verão e
durante o Carnaval. É preciso se falar de Aids durante o ano todo, todos
os dias
George Gouvea, presidente do Pela Vidda
George Gouvea, presidente do Pela Vidda
UOL - No recente livro publicado pela Fiocruz, um dos problemas apontados é a questão do diagnóstico tardio.
Gouvea - Nós temos hoje no Brasil um índice de quase 50% de diagnóstico
tardio, que é quando o sujeito se descobre com HIV já doente. Ele vai
gerar uma série de custos por conta do diagnóstico tardio. Esse sujeito,
quando interna, gera um custo com a permanência no hospital. Ele vai
pedir licença do trabalho gerando custo para a previdência social. Mas o
pior de todas essas coisas que eu acabei de falar é o sofrimento humano
ao adoecer. Isso tudo poderia ser resolvido com um plano de testagem
eficiente. Por que hoje nós não temos nenhum plano de testagem? Hoje
existem centros de testagem a penas nas grandes cidades. É uma questão
política, um cinismo para parecer que tudo funciona bem.
UOL - Não é interessante para o governo a criação de mais centros de testagem?
Gouvea - Se mais polos de testagem forem criados, vai demandar mais
assistência porque mais pessoas serão diagnosticadas e essa demanda de
pessoas soropositivas não vai encontrar atendimento. Se o número de
testagens aumentar nós vamos ter o caos no atendimento.
UOL - A epidemia teve um crescimento espantoso na Região Norte. De 1998 a 2010 a incidência da Aids aumentou em 237,7%...
Gouvea - A tendência de uma epidemia descontrolada é que vá para o
interior, é a interiorização. Se olharmos o mapa do HIV no Brasil se
verifica essa tendência. Se nós já temos problemas nas grandes capitais
eu fico imaginando o que será do interior.
UOL - O último boletim epidemiológico do governo federal
apontou preocupação com a incidência de Aids no segmento jovem gay.
Entretanto, a presidente Dilma Rousseff vetou a campanha de prevenção a
Aids voltada ao público homossexual. Na propaganda vetada, um casal
homoafetivo troca carícias, sequer há um beijo. Censura como essa não
torna mais difícil a prevenção do crescimento do HIV no país?
Gouvea - O que a gente percebe é que nos últimos 10 anos a política
nacional para DST/Aids tem sofrido alguns percalços. Isso tem nos
preocupado muito. Há uma intromissão em políticas públicas de saúde no
Estado laico de determinados setores religiosos. Se o Estado é laico, o
nosso ordenamento político, com todo respeito, não é a Bíblia, é a
Constituição. Nas últimas campanhas houve uma interferência de setores
conservadores. Isso tudo foi muito triste para o movimento. Mas é
importante ressaltar que essas intromissões acontecem nas esferas
superiores. Porque aquele gestor que est á lá na ponta, que é nosso
parceiro, que está em um determinado nível para baixo dentro do governo
do Estado ou município ou governo federal, essas pessoas são parceiras.
Mas acontece que elas têm limites de atuação. Por isso é preciso uma
política de governo que atenda a todos os segmentos da população em
parceria com a sociedade civil organizada.
UOL - E como você interpreta a vulnerabilidade do jovem gay apontada no boletim do Ministério da Saúde?
Gouvea - É comum a gente ler reportagens que dizem que está tendo mais
casos com uma parcela da população. Mulheres, idosos, jovens gays. Na
verdade essa é uma forma estranha de ver as coisas. O que existe é o HIV
se espalhando por todo o tecido social, essa que é a realidade. Por
esse motivo a gente deve ter políticas que atendam as demandas de todos
os segmentos de todas as regiões do país. Eu não posso falar de HIV com
um jovem gay da mesma forma que eu falo com uma pessoa da terceira
idade. Se a gente não respeitar a diversidade de cada segmento fica
difícil a informação chegar.
UOL - O documento publicado pela Fiocruz apontou ainda a
superlotação de hospitais, a falta de leitos para pacientes
soropositivos como outro grande problema. No Rio, onde é a área de
atuação do Pela Vidda, a situação não é diferente. O último relatório do
Ministério da Saúde como o Estado entre os cinco de maior incidência de
casos no país. Você que vive esse dia a dia, qual a realidade destinada
aos pacientes?
Gouvea - Nós temos muitas dificuldades. Infelizmente a questão da Aids
está relegada ao décimo plano no Rio de Janeiro. Eu vou ousar dizer a
você que no Rio de Janeiro, tirando o Ipec da Fiocruz que é federal,
nenhum hospital, seja do município ou do Estado, recebe dignamente um
doente de Aids. Nós temos falta de leitos, os pacientes com Aids, que
precisam ficar em leitos isolados devido ao sistema imunológico
debilitado, ficam jogados nos corredores das enfermarias com outros
doentes. Faltam médicos, faltam infectologistas na rede. Se a pessoa se
descobre soropositiva e procura uma unidade d e saúde, só vai ter a
primeira consulta daqui a quatro, cinco meses. O sujeito que recebe
aquela batata quente, o resultado na mão, não consegue atendimento
imediato. Outro problema é a falta de remédios. O que a gente tem de
informação é que a compra dos medicamentos está em fase de licitação.
Mas há quatro meses. A gente não está falando de saco de cimento, de
tijolo, de argamassa. Se o governo sabe que está acabando, tem de fazer a
licitação bem antes de acabar. A gente está falando de saúde, de vida,
de morte. O que acontece agora é uma licitação assassina.
São
mais de 30 [mortes] por dia. É como se todo dia um ônibus caísse em uma
ribanceira. Na Guerra da Síria já morreram 14 mil pessoas e a ONU está
alarmada achando um crime contra a humanidade. Aqui morrem 12 mil
pessoas por ano de Aids e todo mundo acha que é normal
UOL - O que um paciente soropositivo enfrenta, hoje, para conseguir atendimento?
Um indivíduo que se descobre soropositivo sem estar doente só consegue
uma consulta depois de quatro, cinco meses. E é fundamental esse
primeiro contato com o médico, porque é ele que vai esclarecer, que vai
acalmar esse paciente que procura a unidade de saúde achando que vai
morrer. Depois de conseguir a primeira consulta, ele vai precisar fazer
um exame de sangue. Esses exames em geral demoram mais de trinta dias
para ficarem prontos , o que é outro absurdo, já que na rede privada os
mesmos exames ficam prontos em cinco dias. Depois, para retornar ao
médico com os exames, mais quatro, cinco meses. Então esse paciente
espera quase um ano para o encaminhamento do tratamento dele.
UOL - E se esse paciente se descobre com HIV já com os sintomas
das doenças que afetam o sistema imunológico. O que ele enfrenta na
rede pública de saúde?
Se já é um paciente doente que já apresenta a manifestação das doenças
oportunistas por já estar com o sistema imunológico debilitado, esse
sujeito interna e começa a sua via crucis. Ele tem de contar com a sorte
de cair com um médico que perceba se tratar de um caso de HIV, mas o
que geralmente acontece é o paciente chegar com, por exemplo,
tuberculose em um hospital e apenas essa doença oportunista ser tratada.
Não vai adiantar muita coisa. Essa pessoa fica misturada a outros
pacientes, exposta a pegar outras doenças. Essa falta de estrutura da
rede de saúde em todo o país resulta nesses quase 12 mil óbitos por ano.
São mais de 30 por dia. É como se todo dia um ônibus caísse em uma
ribanceira. Na Guerra da Síria já morreram 14 mil pessoas e a ONU está
alarmada achando um crime contra a humanidade. Aqui morrem 12 mil
pessoas por ano de Aids e todo mundo acha que é normal. Que estabilidade
é essa?
UOL - Que tipos de projetos podem ser executados para que as campanhas contra a Aids atinjam segmentos diferentes da população brasileira?
UOL - Que tipos de projetos podem ser executados para que as campanhas contra a Aids atinjam segmentos diferentes da população brasileira?
Gouvea - Vou te dar um exemplo. Nós fizemos um projeto chamado Babadão
da Prevenção voltado para garotos de programa que trabalham em saunas
gays. Procuramos esses garotos, fizemos com eles um trabalho de
capacitação falando sobre prevenção, o uso da camisinha. Dessa forma,
esses garotos que foram capacitados passaram a conversar com outros
garotos de programa usando a linguagem comum a eles, com seus próprios
símbolos de comunicação. E, por consequência, esse trabalho acabou
atingindo todo o universo de pessoas que frequentam aquele ambiente: os
clientes, os travestis que fazem programa. Não tem como eu ir para uma
esquina falar com uma travesti sobre prevenção, a travesti vai rir da
minha cara e tem toda a razão de fazer isso. Por isso nós criamos um
grupo que é coordenado por uma travesti. É preciso falar a mesma língua.
A prevenção ao HIV só vai funcionar se conseguir atingir todo o tecido
social. Se a gente não conseguir atingir todo o mosaico social, está
fadado ao fracasso ou a essa estabilidade vergonhosa.
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