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Sou muito humorado. Se bem ou mal, depende da situação...

Em 1989 o HIV invadiu meu organismo e decretou minha morte em vida. Desde então, na minha recusa em morrer antes da hora, muito aconteceu. Abuso de drogas e consequentes caminhadas à beira do abismo, perda de muitos amigos e amigas, tratamentos experimentais e o rótulo de paciente terminal aos 35 quilos de idade. Ao mesmo tempo surgiu o Santo Graal, um coquetel de medicamentos que me mantém até hoje em condições de matar um leão e um tigre por dia, de dar suporte a meus pais que se tornaram idosos nesse tempo todo e de tentar contribuir com a luta contra essa epidemia que está sob controle.



Sob controle do vírus, naturalmente.



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Beto Volpe



VIDA EM CRÔNICA

O Departamento Nacional de DST/AIDS;HV promoveu um concurso para que pessoas vivendo com HIV relatassem suas histórias de vida. Nomeado Vidas em Crônica, teve como resultado a publicação de 15 historias, 05 para cada década da epidemia: 80, 90 e atual. Emplaquei as duas primeiras, a terceira era tão pesada que talvez fosse mais assustar do que ajudar, hehehe...  Enfim, meus loucos anos 80 e 90 estão abaixo, sucedidos pelo delicado texto do pessoal da ASCOM do Departamento. Muito obrigado a todos e todas!

Muita lapela para pouca camisinha

Autor(a): 
Beto Volpe
Março de 1985. Havia um ano que eu mudara de minha cidade natal para a grande metrópole, onde morava e trabalhava na Avenida Paulista. Desde o início da década já se ouvia falar sobre a “peste gay” que vinha dos Estados Unidos, mas naquele dia ela tomou forma para mim. Um grande companheiro de atividades sindicais no banco onde eu trabalhava estava estranho naquele dia e no almoço veio o motivo: “Amigão, to com aids”. Dos noticiários para a cadeira à minha frente. De Hollywood ao fundo do meu coração. Foi um choque, naturalmente. Mas, mesmo tendo essa referência tão próxima, sequer pensei em abandonar as noitadas nos parques públicos onde rolava de tudo, sem camisinha e doidão. O tempo passou, voltei a morar no litoral onde tinha um grande parque à beira mar todinho para mim. Até que em maio de 1989 decidi, impulsivamente, fazer o tal teste de HIV. Foi a agulha sair de minha veia e o filme de minha vida sexual começou a passar em minha mente na certeza de que eu teria de arcar com as consequências de tanto prazer desprotegido. Qual não foi a minha surpresa ao receber o resultado não reagente! Sim, Deus existe! A partir de então passei a adotar práticas seguras, camisinha sempre!
Aí, apareceu o grande amor... Ou ao menos o que parecia sê-lo. Onde a sensação de que envelheceríamos lindos, juntos e felizes aumentava a cada semana. E quando cada gota de suor escorria em êxtase, pouco importou de quem partiu, mas alguém falou em tirar a camisinha só um pouquinho e não demorou nada para a idéia virar prática comum, afinal iríamos envelhecer lindos, juntos e felizes. Até que... Espanto! O amor acabou. E da pior maneira, acabou em chifre e baixaria. Nunca mais ouvi falar dele. Foi quando, em novembro de 1989 começaram os sonhos. Todas as noites eu entrava em uma agitada assembleia de bancários, magérrimo, sem cabelos, com as faces encovadas e todos me olhando com piedade. Eu acordava sobressaltado, molhado de suor. Não deu outra: Elisa. Porém, desta vez não fiquei ansioso, de alguma maneira meu espírito havia sido preparado. Bingo: reagente.
Eu me via agora diante do maior dilema de minha vida: contar a meus pais? Nem cogitava a ideia de manter sigilo, temos laços muito fortes para sustentar essa ideia. Chamei meu saudoso e amado irmão caçula para irmos à praia, onde sentamos na areia e eu me disparei sem rodeios: “Estou com aids”. Acostumado ao humor característico da família, ele riu. E eu olhei para ele com as lágrimas começando a correr pelo meu rosto. Choramos a tarde toda. Decidimos contar naquela mesma noite para meus pais. Um silêncio ensurdecedor e uma única lágrima incontida a correr pela face de minha mãe me fizeram sentir a pior das pessoas. Meu pai quebrou o clima com sua praticidade: “Agora é ver o que tem a fazer”.
Assim minha família teve a noite feliz mais triste de nossa história, até então. Foi o primeiro de muitos “últimos natais” que passamos juntos. Como juntos estamos até hoje.

Os anos da Fênix

Autor(a): 
Beto Volpe
Primeiro de janeiro de 1990. O mundo explodia em fogos celebrando a entrada na última década do milênio. As pessoas entoavam canções, riam, brindavam. Ainda me partia o coração aquela lágrima derramada por minha mãe há apenas um mês, quando havia recebido o diagnóstico de HIV+ e contado à minha família. Ainda doía a praticidade atônita de meu pai garantindo apoio para a empreitada. Ainda doía o vibrante e encorajador apoio de meu saudoso e amado irmão caçula.
O comando havia sido dado: REAGENTE! REAJA! E como é difícil reagir diante do que na época era um atestado de óbito em vida. Semanas? Meses? Anos? Ninguém sabia precisar nada, havia medo: uma linha amarela no chão nos separava dos médicos do INSS. E nessa toada foram sete anos de muito sexo, drogas e forró, sempre com a maldita sensação de que poderia ser a última transa, a última carreira, o último sono.
Os demônios adoram acordar e dar festas na hora de dormir. Com tanto desgaste físico e adições químicas, 1996 vieram as inoportunas oportunistas, consequências de um CD4 marcando seis. “Senhorita, não falta um ou dois zeros aqui?” Não, seis mesmo. Além de diversas infecções “menores”, uma pneumonia, três episódios de neurotoxo e uma infecção generalizada por cândida reduziram meu peso de 68 para 34 quilos, conferindo-me o direito de ser rotulado de terminal.
E desafiando a certeza científica de que um tratamento eficaz ainda levaria muito tempo, em 1996 mesmo chegou o coquetel e uma recuperação lenta, gradual e progressiva. Eu e minha família respirávamos aliviados. Mesmo carregando sequelas e com muito pouca gente ao meu lado, havia a confortante e falsa ideia de que o pesadelo teria chegado a seu fim. Só que as pernas e braços foram afinando e o rosto encovando de uma hora para outra, envelhecendo-me 20 anos em 1!
Na mesma época, frequentava a sala de bate-papo sobre HIV na internet, que dava a maior força para formar um novo círculo de amigos. E a convite deles fui a um encontro de pessoas com HIV em 98, no Rio, onde fui formalmente apresentado à Lipodistrofia. Então aquela aparência doentia tinha nome e era efeito colateral. Bem, tocando em frente, fui cobaia em um implante facial que restaurava a juventude perdida, hoje no SUS.
Como é lindo recuperar a identidade! Mais que recuperar, eu estava assumindo, aos poucos, outra identidade. Simultaneamente a tudo isso eu conhecera alguns ativistas da luta contra a aids e um grupo de adesão no SAE da minha cidade, no qual me inseri. Falava-se de união, de direitos, de... ONG! Sim, por que não fundar uma ONG, fazer algo mais que tomar remédios?! Dar sentido a tantas dificuldades! Ao apagar das luzes do século XX, o monstrinho que viera me matar, na realidade havia vindo para dar sentido ao fato de estar Vivendo. E um grupo de cidadãos soropositivos começava a se organizar e a reescrever suas vidas.

Só termina quando acaba

Esta não é uma história triste, avisa o personagem principal. É uma história recheada de episódios tristes, mas com final feliz. Não, corrige o personagem principal: é uma história feliz, mas sem final, porque ainda não acabou. Esta é uma história TÃO cheia de episódios tristes que poderia até entrar na novela. E não é que entrou? Quer dizer, entrou DEPOIS da novela (Viver a Vida), no final do capítulo, em forma de depoimento do personagem principal desta história. E ajudou a levantar o astral de muito telespectador. Sim, porque esta é uma história de superação. E também porque o nosso personagem não abre mão do bom humor. Conta piada de câncer até na sala de espera da quimioterapia! E a plateia – toda ela com câncer – morre de rir! Quer dizer, todo mundo ri, mas ninguém morre, até porque rir é o melhor remédio.
Mas vamos à história: Estamos em 1985 e Beto Volpe – o nosso personagem – acaba de saber que um colega de banco está com aids. A notícia assusta, mas Beto continua curtindo a vida adoidado: noitadas e mais noitadas em parque público, drogas e mais drogas, parceiros e mais parceiros, e nada de camisinha. Até que quatro anos depois resolve fazer o teste de HIV. Surpresa: não reagente! O cara que transava com um monte de parceiros não tinha aids! Em agradecimento à Divina Providência decidiu que, a partir dali, camisinha sempre! Até que apareceu o grande amor. E como prova de amor do grande amor, os apaixonados largaram a camisinha de lado. A parte triste da história começa quando o amor acaba. Ou, mais exatamente, quando nosso herói passa a ter o mesmo sonho todas as noites: ele numa assembleia de bancários, o corpo só pele e ossos, as faces encovadas... Beto faz novo exame. Surpresa: reagente! O cara que praticava sexo com amor e um único parceiro – mas sem camisinha – tinha aids. E em 1989 a aids não queria dizer “você vai morrer”; o que a aids dizia, em alto e bom som, era: “você está morto”.
A morte não compareceu pessoalmente, mas mandou representantes de peso. Em 1996, um CD4 marcando 6, consequência do mergulho nas drogas para suportar as mortes dos amigos. “Senhorita, não está faltando um zero ou dois aqui”? Não estava. E vieram: pneumonia, três episódios de neurotoxo, infecção generalizada por cândida, queda de peso de 68 para 34 kg e o rótulo de “paciente terminal”. Beto odeia tanto este rótulo que seu livro de memórias vai se chamar – com o perdão da má palavra – Terminal é o caralho!
Para Beto Volpe, o jogo só termina quando acaba. E ele sobreviveu, com a ajuda do coquetel. Mas aí as pernas e os braços foram afinando e o rosto ficando encovado. E veio a depressão, a vontade de não mais sair de casa, e os mergulhos numa droga do bem chamada internet, que dava então os primeiros passos. E vieram os bate-papos virtuais com ou¬tros soropositivos, e a vontade de com eles criar uma ONG. E hoje já lá se vão dez anos de militância, que lhe renovou a vontade de viver.
Beto descobriu que sofria de lipodistrofia, efeito colateral dos medicamentos. Por isso o rosto encovado e a aparência de velho. Decidiu ser cobaia de um implante facial e ficou jovem e bonito de novo. Feliz. Mas eis que as pernas começam a doer: cabeças de fêmur necrosadas pelo tanto de gordura no sangue. E vem a fase mais dolorosa: duas cirurgias nos quadris, fratura por osteoporose, instalação de placa, retirada de placa e instalação da prótese de cabeça de fêmur, com breve alívio na rotina de dor, leito, cadeira de rodas, andador, bengala.
Início de 2003: linfoma na medula, pescoço, pulmão, fígado, baço, retroperitônio e virilha. E quimioterapia, e piadas sobre câncer, e 27 kg a menos, e a cura do câncer. Mas os infortúnios em série não haviam terminado: atropelamento por moto que subiu na calçada e fratura de quadril, instalação da segunda prótese, depois um carcinoma maligno no reto, e em seguida outro, e uma cirurgia e depois outra, e sessões diárias de radioterapia, da qual até hoje carrega efeitos colaterais.
Neste meio tempo, o pior de tudo: o suicídio do irmão caçula. As pessoas chegando para o velório do “filho do seu Geraldo” e tomando susto, como se vissem um fantasma, porque o que havia sido dado como morto estava vivo, e o morto era o outro filho do seu Geraldo, aquele que pelas leis da natureza teria ainda muitos e muitos anos de vida, e a mãe segurando as mãos do filho sobrevivente e murmurando “que ironia, que ironia”...
Beto dá valor a cada uma de suas feridas. O bicho que veio para matá-lo virou sua fonte de energia. Aprendeu que o sentido da vida é enfrentar as dificuldades. E que a vida é maior que a aids. Pensa que se morresse há 20 anos ninguém sentiria sua falta, mas que hoje cravou seus passos no planeta, ajudando outros soropositivos, semeando o bem. Tem a saúde frágil, mas é mais forte do que antes. Beto Volpe ama Beto Volpe, e procura expandir esse amor para o próximo. Porque, ensina ele, “amor represado vira câncer”.
E aqui termina a nossa história, e este é um final feliz, ainda que provisório, já que a história não tem fim. Ainda não terminou, porque, como diria Beto Volpe, terminal é o caralho!

FIM (provisório)