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Sou muito humorado. Se bem ou mal, depende da situação...

Em 1989 o HIV invadiu meu organismo e decretou minha morte em vida. Desde então, na minha recusa em morrer antes da hora, muito aconteceu. Abuso de drogas e consequentes caminhadas à beira do abismo, perda de muitos amigos e amigas, tratamentos experimentais e o rótulo de paciente terminal aos 35 quilos de idade. Ao mesmo tempo surgiu o Santo Graal, um coquetel de medicamentos que me mantém até hoje em condições de matar um leão e um tigre por dia, de dar suporte a meus pais que se tornaram idosos nesse tempo todo e de tentar contribuir com a luta contra essa epidemia que está sob controle.



Sob controle do vírus, naturalmente.



Aproveite o blog!!!



Beto Volpe



quinta-feira, 13 de outubro de 2011

O humor intolerante

Descrição: a sem graça Maisa, pupila de Sílvio Santos, declarando que odeia piada sem graça
Descrição da imagem: a igualmente sem graça Maisa declarando, através de um balão de HQ, que não aguenta piada sem graça…

Se o amor é um passo pruma armadilha, como disse Djavan, o humor é a própria armadilha. Quem, como eu, o tem como uma forte característica de trabalho sabe o quanto é perigoso fazer graça com temas sérios. Um pequeno deslize e você atravessa a tênue linha que separa o engraçado do ofensivo. São vários os exemplos onde personalidades teceram comentários humorados diante de assuntos delicados e tiveram suas carreiras marcadas para todo o sempre. O maior deles talvez seja o de Marta Suplicy, sexóloga pioneira na TV brasileira, política, gestora da maior cidade da América do Sul e que será lembrada por toda a eternidade por seu comentário sobre o tumulto nos saguões durante a crise dos aeroportos:

- Relaxa e goza.

Ela disse exatamente o que se deve fazer nessa situação, procurar não se estressar e arrumar algo prazeroso para fazer. Só que o fez de forma engraçadinha, a frase não caiu nada bem e foi uma das mais repetidas na propaganda eleitoral de seus adversários políticos. Outro grande exemplo é o de Paulo Salim Maluf quando concorreu à presidência da República em 1989, defendendo endurecimento da pena para estupros seguidos de morte:

- Estupra, mas não mata.

E esse se tornou, sem sombra de dúvidas, um dos feitos mais lembrados de sua extensa e intensa carreira política. Pois bem, muito tem se falado sobre os limites do humor e até mesmo se esse limite deve ou não existir. Também se questiona as mesmas coisas sobre o politicamente correto, se está ocorrendo um excesso na defesa dos direitos individuais e coletivos ou é esse o caminho para uma sociedade mais justa e solidária.

Quem assistiu aos programas humorísticos do século passado lembra que não havia nada disso, tudo era motivo para piadas de gosto bastante questionável, recheadas de estereótipos e pouco importava se aquele quadro não tinha graça nenhuma para quem se identifica com a personagem. Não era nada fácil para mim assistir, ao lado de meus pais, piadas ridicularizando homossexuais. Da mesma forma como não deve ser fácil para um idoso ver a expressão de aversão de Danilo Gentilli, um dos bufões do CQC, ao dizer em seu programa de Stand Up veiculado em um canal da TV paga:

- Vocês já viram a sala de espera da saúde pública? Tem mais velho (nesse momento entra a cara de nojo) que a piscina do Cocoon.

Nesse exemplo fica muito claro onde ele escorregou, foi no sentimento transmitido pela fisionomia que alterou completamente o sentido da piada. Passou de graça a ofensa. Danilo tem nojo de velhos? Ele tem mãe? Ele espera ter um futuro longevo? Outro dos pupilos de Marcelo Tass que parece que perdeu a mão foi o bom e inteligente Rafinha Bastos. O gaudério jornalista não deve se sentir ofendido por piadas de gaúchos, pois ser gaúcho não é uma situação que provoca exclusão social e nem sofrimentos. Pelo contrário, é um povo reconhecido por sua auto estima elevada e que ri dessas piadas todas. Portanto ele não deve saber o que é a dor de se ver retratado de forma ridícula em um meio de comunicação, expondo essa pessoa da mesma forma à sociedade com a qual ela convive. Como a maneira com que foram mostradas pessoas com deficiência intelectual no quadro Comédia MTV, que resultou em ação pública.

Sou árduo defensor da liberdade de pensamento e de expressão. Vivi minha infância e juventude sob a rígida ditadura militar, não podendo falar nada e sei quão cara é essa tal Liberdade. Mas também defendo o direito de qualquer pessoa em procurar justiça caso se sinta insultada ou constrangida por piadistas de mau gosto, seja de forma espontânea ou através da Justiça. Engraçado que quando se fala em reparação, os ‘inimigos’ do politicamente correto se levantam e gritam que ‘se fosse nos Estados Unidos ele poderia falar o que quiser’. E esquecem de mencionar o tanto de processos que correm neste momento no sistema judiciário norte americano justamente por ofensas feitas por, repito, piadistas.

Wanessa Camargo e o marido vão processar Rafinha pela graça sobre sua gravidez. O mesmo está ocorrendo com o rapaz no 4º DP de São Paulo, onde o mesmo foi denunciado por apologia ao estupro. É, a discussão vai longe, mas parece que a tendência é a de que um ser humano ofendido vale mais do que um milhão de piadas idiotas juntas. Não é preciso ser intolerante para ser engraçado. Aliás, a intolerância não tem graça nenhuma, a não ser para os intolerantes.

Beto Volpe

Artigo publicado originalmente em http://www.imprenca.com/

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Cobaias de Deus

Descrição da imagem: lado a lado, reprodução do Homem Vitruviano de Leonardo da Vinci e um ser bípede vermelho com quatro grandes braços cascudos, patas e uma cabeça muito pequena, contrastando com seu peitoral. Traja roupinha clubber branca e preta.


"Se você quer saber como eu me sinto, vá a um laboratório, um labirinto. Seja atropelado por esse trem da morte. Vá ver as cobaias de Deus!"
Cazuza

Pessoal, não sei ao certo por quanto tempo estarei limitado, o fato é que amanhã serei submetido à minha 20ª cirurgia , a primeira de uma série de três ou quatro até o final do ano. Aguardem bolão sobre o local da 24ª, o vencedor ganhará um prêmio especial do blog. Enfim, mais uma patologia comumente encontrada entre idosos e a certeza cada vez mais presente de que o futuro virou coisa do passado e que meu corpo físico está envelhecendo antes do tempo. Lipodistrofia, osteoporose, problemas de ereção, cânceres, demência e agora catarata. Acabo de completar 50 anos de idade, mas meu corpo me diz que tem 70. Ainda bem que o espírito se renova a cada dia e a pele não foi atingida pelo amadurecimento precoce, isso balanceia a situação e permite tocar em frente.

Quando o coquetel chegou e percebemos que ainda não seria hora de embarcar, cada qual para sua dimensão, aceitamos o fato de que teríamos conseqüências pelo uso continuado de medicamentos potentes e que sequer completaram o processo formal para sua aprovação. E aí não vai uma crítica, não fosse essa celeridade não haveria o Carga Viral. Igualmente sabemos que a covivência por longo tempo com organismo invasor tão ardiloso nos modificaria de alguma maneira, não há casa que não se molde a seu inquilino, em algum aspecto ou intensidade. E, mesmo o governo e a ciência sabendo disso, ainda ouvimos de gestores, profissionais de saúde e até de alguns médicos a pérola da comodidade:

- Vocês estão envelhecendo como todo mundo.

Não é o que diz pesquisa da UFRJ, já mencionada em artigo meu na Folha de S. Paulo e comentada neste blog, onde o crescimento de óbitos por problemas cardiovasculares foi de 0,8% entre pessoas que não têm o vírus HIV em seu corpo ao passo que entre pessoas vivendo o índice salta para 8%¨ao ano. Igualmente díspares são os de cânceres, 8% contra menos de 3&. Também não é o que retrata pesquisa do Instituto de Traumatologia e Ortopedia do Hospital das Clínicas de São Paulo, do qual sou cliente há onze anos, de que 16% das pessoas vivendo com HIV têm sérios problemas ósseos como osteoporose e osteonecrose. Também não é bem um envelhecimento natural  vermos mulheres entrando na menopausa antes dos 30 e homens da mesma idade passando por frustrações sexuais que sequer eram consideradas antes dos 60. E não são poucos nem poucas, o desequilíbrio hormonal é uma das características dessa nova fase da epidemia, a fase pós coquetel.

Como está o estado de espírito dessas pessoas? As que foram levadas a uma situação de deficiência estão tendo acesso aos serviços de saúde e a outros mecanismos sociais? A referência e contra referência com outras disciplinas médicas como oncologia, cardiologia e ortopedia está sendo satisfatória? E a prevenção a esses agravos, como está? Onde estão os dados sobre a qualidade de vida das pessoas vivendo com HIV? Estão empregadas ou engrossaram as estatísticas de desemprego? ONDE ESTÁ O INTERESSE NA QUALIDADE DE VIDA DAS PESSOAS VIVENDO COM HIV? Já disse, sabemos que assinamos um contrato com o imponderável, mas esperamos uma pronta reação do governo e da sociedade civil para essas questões. Afinal, a portaria da lipodistrofia, antiga conhecida, sequer está implementada em boa parte do país.

Os dados estão saindo, ao menos isso. Até pouco tempo era apenas nossa percepção e nossa indignação que rasgavam espaços em aberturas de congressos e em reuniões com gestores e SEMPRE FORAM NEGLICENCIADAS sob o argumento de que não havia dados a respeito. E agora, qual será a desculpa, tanto do Estado quando da sociedade civil organizada para varrer os efeitos colaterais para debaixo do tapete? Não dá mais para conviver com o princípio de que estamos vivos e que, dadas as perspectivas anteriores ao coquetel, isso deveria nos bastar.

Queremos de volta a URGÊNCIA na solução de problemas da AIDS.
Queremos a CURA.
Queremos qualidade de vida.
Queremos editais de pesquisas que revelem como está ela está, mas que não sejam tecnicistas, onde nem médicos se atrevem a se inscrever.
Queremos eventos científicos a respeito do assunto com nossa participação em todos os passos da organização. Nada sobre a gente sem a gente.
Queremos, sobretudo, que nossa voz seja ouvida. Mas... Que voz? Quem deveria gritar está ocupado demais discutindo eventos e projetos.

E que seja respeitado o Código de Nuremberg. Afinal, não somos cobaias de Deus Somos cobaias a serviço da humanidade e da evolução científica.

Beto Volpe