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Sou muito humorado. Se bem ou mal, depende da situação...

Em 1989 o HIV invadiu meu organismo e decretou minha morte em vida. Desde então, na minha recusa em morrer antes da hora, muito aconteceu. Abuso de drogas e consequentes caminhadas à beira do abismo, perda de muitos amigos e amigas, tratamentos experimentais e o rótulo de paciente terminal aos 35 quilos de idade. Ao mesmo tempo surgiu o Santo Graal, um coquetel de medicamentos que me mantém até hoje em condições de matar um leão e um tigre por dia, de dar suporte a meus pais que se tornaram idosos nesse tempo todo e de tentar contribuir com a luta contra essa epidemia que está sob controle.



Sob controle do vírus, naturalmente.



Aproveite o blog!!!



Beto Volpe



segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Aids: entre a cura possível e um novo surto mundial



Outra importante voz se levanta contra a banalização da AIDS. Francoise Barré-Sinoussi, co descobridora do HIV, demonstra claramente o dilema em que se encontra a sociedade nesse jogo de vida ou morte. 
Beto Volpe

Descrição da imagem: A autora demonstra, vestindo conjunto bege e branco e com um sorriso irônico e questionador, o tamanho do problema em questão, espalmando as mãos voltadas para o centro com uns trinta centímetros de uma para a outra.

Apesar dos progressos da pesquisa, desde a primeira descrição da aids, em junho de 1981, pronunciar a palavra “cura” permanece temerário. Em maio de 1983, isolamos o agente responsável por esta degradação geral do sistema imunológico, nomeado em seguida vírus da imunodeficiência humana (HIV, em inglês). Trinta anos de pesquisas nos permitiram chegar a um conhecimento extremamento detalhado dos mecanismos de replicação do vírus e de sua disseminação em diversos compartimentos do corpo, onde ele se fixa de forma latente em reservatórios.

Os resultados mais notáveis deste progresso científico são as combinações de antirretrovirais (ARV), que surgiram em 1996 e permitiram reduzir em mais de 85% a mortalidade dos pacientes. Sua ação é, além de terapêutica, preventiva. Desde 1994, o experimento clínico ACTG076 mostrou a eficácia da azidotimina (o AZT) para prevenir a transmissão do HIV na gravidez. Estudos recentes acabam de confirmar a potência dos ARVs para limitar de maneira drástica a transmissão sexual do vírus.

São resultados muito importantes. Ao comprovarem que os ARVs permitem não apenas salvar muitas vidas, mas também impedir novas contaminações e frear a expansão da epidemia, requerem uma aceleração do acesso universal aos tratamentos. Em Botswana, onde a cobertura por antirretrovirais é de 90%, “o número de novas infeções por HIV é de 30% a 50% inferior ao que se daria na ausência de acesso universal ao tratamento”, indica o último relatório da Onusida(1).

Ora, muitos países não possuem os recursos que permitiriam enfrentar o custo elevado dos tratamentos. Dependem da solidariedade internacional. Infelizmente, a crise financeira mundial projeta pesadas incertezas sobre o futuro de tais financiamentos, pois os países doadores não respeitam mais seus compromissos. A falta de ARVs já se faz sentir em diversos países receptores de apoio. Eles tornam-se incapazes de tratar pacientes novos e arriscam-se até a interromper os tratamentos em curso. A situação é ainda mais inquietante porque a interrupção das terapias pode levar ao surgimento de cepas do HIV resistentes, e abrir caminho para o ressurgimento de uma epidemia mundial.

A luta contra uma pandemia como a do HIV não pode ser fragilizada pela volatilidade das políticas. É imperativo encontrar mecanismos de financiamento inovadores e perenes, como o tributo sobre as passagens de avião que alimenta o fundo da Unitaid. Há anos, diversos movimentos reivindicam que se tributem as transações financeiras, em benefício da saúde nos países em desenvolvimento. Devemos fazer todo o esforço necessário para que esta proposta seja considerada pelos países do G-20.

Em paralelo, devemos redobrar os esforços para desenvolver novas opções terapêuticas. Não se deve esquecer que, embora os antirretrovirais permitam aos pacientes viver com o HIV – o que já é muito –, o tratamento desta infecção ainda é pesado. Os coquetéis de drogas, que têm efeitos colaterais, precisam ser usados durante toda a vida, sem falhas. Mas eles não eliminam totalmente o vírus, cuja persistência nos reservatórios do corpo está associada a uma inflação crônica e generalizada do sistema imunológico. Os pacientes não recuperam uma esperança de vida idêntica à da população geral. Eles sofrem, entre outros, riscos mais elevados de doenças cardiovasculares, neurológicas, câncer e envelhecimento precoce do organismo.

Erradicar a infecção pelo HIV será, por algum tempo ainda, um sonho. Enquanto isso, um conjunto de modelos permite pensar que poderíamos, em certo prazo, transformar este sonho em realidade, desenvolvendo estratégias terapêuticas curtas, que permitissem alcançar uma remissão de longo prazo, independente de qualquer tipo de tratamento.

Recentemente, o caso de Timothy Ray Brown, chamado de “paciente de Berlim”, demonstrou a viabilidade de tal estratégia. Este homem de seus quarenta anos, que vivia com HIV, desenvolveu uma leucemia. Obrigado a realizar um transplante de medula óssea para curá-lo, seu médico selecionou um doador compatível, mas que tinha, além disso, uma particularidade genética: uma mutação do co-receptor CCR5 – uma molécula na superfície das células T CD4, com a qual o vírus interage, para penetrá-las. Sabemos há alguns anos que alguns indivíduos raros – de origem caucasiana – possuem esta mutação, chamada Delta 32, que os torna resistentes à infecção pelo HIV.

Em fevereiro de 2007, no momento do transplante de medula, o tratamento antirretroviral foi interrompido. Desde então – há cerca de cinco anos – não se detecta nenhum traço do vírus no paciente, mesmo quando empregados os métodos mais sensíveis e quando se vasculha todos os compartimentos em que o HIV estabelece reservatórios (intestinos e sistema nervoso central). No entanto, seu organismo continua a produzir anticorpos contra o vírus, indicando que a infecção pode não ter desaparecido totalmente. Do ponto de vista científico, é difícil afirmar se na origem desta “cura” está apenas a mutação Delta 32. Os tratamentos imunodepresssivos que acompanham uma intervenção cirúrgica tão complexa podem ter jogado um papel. Ainda que seja impossível imaginar o desenvolvimento em larga escala de um método extremamente arriscado e custoso, o caso único do “paciente de Berlim” oferece uma razão científica para abordagens de terapia genética que tenham como alvo, entre outros, o receptor CCR5.

Os pacientes “de controle” do HIV representam o modelo ideal de cura a longo prazo. Trata-se de indivíduos raros (menos de 0,3% das pessoas infectadas pelo HIV) que, soropositivos há mais de dez anos, mantêm sem nenhum tratamento uma carga viral indetectável, e não apresentam nenhum sinal de progressão da aids. Observa-se nestes pacientes, de forma notável, um nível de reservatório do HIV mais frágil que nos demais. Sabemos hoje que a manutenção deste controle natural – e extremamente poderoso – da infecção é assegurado por dois mecanismos diferentes. O primeiro diz respeito às células imunitárias chamadas citotóxicas (que eliminam as células infectadas). O segundo está ligado a uma resistência intrínseca de células imunitárias. A compreensão destes mecanismos pode nos ajudar a elaborar novas estratégias terapêuticas, para que um dia todas as pessoas que vivem com o HIV passam controlar sua infecção mesmo interrompendo o tratamento hoje majoritário.

Além disso, há na França um estudo único, chamado Visconti, que reúne dezoito pacientes. Diagnosticados e tratados entre dois e três meses após a infecção, eles interromperam, segundo seus médicos, o tratamento após alguns anos. Desde então, controlam a infecção. Estas observações confirmam o enorme benefício de um tratamento ultraprecoce. A análise das características imunológicas que permitem a estes pacientes dispensar terapias poderá aportar informações extremamente preciosas.

Um último modelo importante é o dos macacos da África, hospedeiros naturais dos vírus da imunodeficiência simiesca (SIV), que originaram o HIV. Ao contrário dos humanos contagiados pelo HIV, os macacos não desenvolvem aids. Se seu sistema imunológico reage à infecção, esta resposta é rapidamente reprimida. Resultado: entre eles, o vírus multiplica-se livremente, sem que se observe a reação inflamatória crônica terrível que atinge o ser humano.

Que mecanismos é preciso induzir, para desencadear uma proteção contra o HIV-aids? Isto ainda é um mistério. Muito provavelmente, uma combinação de abordagens terapêuticas e vacinais será necessária. É por isso que, sob a égide da Sociedade Internacional da Aids (International Aids Society, IAS), um grupo de trabalho composto de cientistas do mundo inteiro se debruça sobre uma estratégia global, capaz de definir as prioridades que é preciso perseguir, na esperança de vivermos, um dia, num mundo sem HIV-aids. As pesquisas não serão úteis apenas ao combate contra a aids.

O HIV pode ser, também, uma ferramenta que ajude a compreender melhor os mecanismos precisos que comandam nossa resposta imunológica. Temos muito a aprender com nossos colegas que trabalham com o câncer e outras doenças crônicas também ligadas a anomalias inflamatórias.

Neste período de crise, há duas opções possíveis: a solidariedade e a colaboração, estabelecidas no início da epidemia. Ou o cada-um-por-si, uma escolha que só produziria perdedores.

Françoise Barré-Sinoussi é pesquisadora no Instituto Pasteur e no Inserm. Em conjunto com Luc Montaigner, foi agraciada com o Prêmio Nobel de Medicina em 2008, pela descoberta do HIV.
** Tradução: Antonio Martins.
*** Publicado originalmente no Le Monde Diplomatique e retirado do site Outras Palavras.

O Brasil e os compromissos internacionais em AIDS



Pessoal, aquilo que o governo federal arquitetava há alguns anos finalmente virou realidade. Uma realidade aterrorizante, tamanha a banalização com que a AIDS é tratada e que certamente provocará muitas mortes em nosso país. Descentralização da assistência em HIV para as UBSs, pulverização dos recursos destinados à AIDS e acumulados anos a fio pelos secretários estaduais e municipais de saúde, fim da política de incentivo, fechamento de ONGs e o desmonte das estratégias de enfrentamento à epidemia. São muitos e terríveis os desafios que se tornaram presentes e urge que o movimento social em AIDS e a sociedade civil organizada em todos os setores se mobilizem para atenuar o máximo possível os danos desse genocídio disfarçado de efetivação dos princípios do SUS. Retomemos a luta, companheiros, pois os tempos sombrios estão de volta. Reproduzo excelente artigo do coordenador do UNAIDS no Brasil, Dr. Pedro Chequer. Em outras palavras, não somos só nós, membros da sociedade civil, que estamos desesperados. A ONU também demonstra claramente sua preocupação.
Beto Volpe

Descrição da foto: rosto de homem que grita em desespero com os dentes à mostra, dentro de sua boca é reproduzido o grito e dentro da boca novamente a cena e assim por diante, num desespero sem fim.

O Brasil e os compromissos internacionais em AIDS

O Sistema Único de Saude, estabelecido com base na Constituição de 1988, que define a saúde como um direito do cidadão e dever do Estado e tem seu marco de regulamentação na Lei 8080/1990 que dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e define sua estrutura política e atribuições de seus diversos níveis, sem dúvida alguma foi o arcabouço que permitiu ao Brasil estabelecer com qualidade e competência o programa de acesso ao tratamento da infecção pelo HIV e da aids. Os primeiros passos de sua implantação em 1996, sem qualquer dúvida, não teria sido possível sem os princípios e estrutura dos SUS. Devemos ter claro, todavia, que apesar do princípio constitucional do direito à saude, a operacionalização desse direito nas mais diversas áreas da saúde, em que pese os avanços obtidos, ainda apresenta importantes lacunas e carece de mecanismos mais consistentes para sua efetivação plena. A garantia, por exemplo, do acesso gratuito aos antirretrovirais só foi possível em sua plenitude, por intermédio da Lei 9313/96, projeto de autoria do Senador Jose Sarney, aprovado pelo Senado Federal e sancionado pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, apesar das restrições de caráter econômico trazidas à discussão por determinados setores do próprio Governo. A existência do SUS e a garantia constitucional, ainda que necessárias, não seriam suficientes para assegurar esse direito - Haja vista uma série de problemas de saúde que enfrentam obstáculos para seu atendimento segundo os parâmetros do acesso universal por direito constitucional e como dever do Estado.

O estabelecimento do tratamento antirretroviral gratuito, sobre o qual não pretendemos aprofundar a discussão nesta reflexão, teve sua origem na pressão social e na fundamentação científica, ao que se soma a sensibilidade política que fez converter um anseio social legítimo em uma prática do Estado; esta pratica de modo ininterrupto, tem se mantido, independentemente de seu custo financeiro, ainda que apresente custo-benefício inquestionável – uma fonte de poupança de recurso público, tanto no campo da saude como da previdência, sem entrar no mérito de aspectos outros de relevância extrema.

Ao longo desse período, a aquisição dos medicamentos destinados a aids permaneceu centralizada - decisão estabelecida em 1996 e que tem representado importante fator de economicidade e garantia de um abastecimento continuado. Ao lado desse parâmetro normativo, estabeleceu-se, também, que a aquisição de medicamentos para agravos associados à infecção pelo HIV seria de responsabilidade de estados e municípios; lamentavelmente, apesar da pactuação estabelecida, seu pleno cumprimento, com honrosas exceções, tem apresentado importantes lacunas de implementação.  Ao tempo em que se manteve centralizada a aquisição de antirretrovirais, outros aportes do governo federal foram descentralizados, entre eles, parte dos recursos destinados ao enfrentamento da epidemia da aids. “Instituída em dezembro de 2002, a Política de Incentivo consiste em financiar Unidades Prestadoras de Serviço, por meio de mecanismos regulares do SUS. É a transferência fundo a fundo - repasse regular e programado de recursos diretamente do Fundo Nacional de Saúde para estados e municípios, independentemente de convênio ou instrumento similar”, é o que reza o Portal do Departamento de Aids, de modo bastante didático e objetivo.

Esta nova estratégia, correta do ponto de vista político e da necessidade de maior autonomia a estados e municípios, substituindo a antiga modalidade de convênios, esbarrou-se na dificuldade da utilização dos recursos em tempo oportuno, chegando em algumas situações a níveis inaceitáveis do pondo de vista do uso adequado do recurso público, quando se constata acúmulo de anos em recursos financeiros depositados nas contas bancárias sem a utilização em tempo hábil, não pela inexistência de planos e programas para sua execução ou mobilização da equipe técnica, mas pela dificuldade da burocracia e baixo nível de priorização política, obstáculos que, com raras exceções, também se acumularam e se agravaram ao longo do tempo. 

Preocupa-nos recentes informações sobre a pulverização do recurso destinado a aids  decorrente da política de incentivo e acumulado até dezembro de 2011. De modo algum entendemos como aceitável do ponto de vista ético, a existência de recursos sem utilização quando as necessidades são prementes e se agravam tanto na área de assistência, quanto de prevenção, e particularmente nesta. Aí estão também incluídos os recursos destinados às organizações da sociedade civil, que por todo o país fecham as portas, mesmo as mais tradicionais, pela carência de recursos para seu funcionamento.

Vale registrar que a descentralização também incluiu o aporte de recursos ao movimento social para suas ações em caráter complementar e de apoio as ações do Estado, em diversas áreas onde somente ele é capaz de atuar com competência, estabelecendo ambiente de adequado acolhimento, além do exercício essencial de controle social, indispensável num regime democrático e transparente.

Diante da inadmissibilidade da situação atual, uma medida de caráter político poderia ter sido tomada, como por exemplo, o estabelecimento de parâmetros administrativos que viabilizassem a utilização do recurso por estados e municípios segundo as Programações de Ações e Metas aprovadas pelos conselhos municipais e estaduais com a celeridade necessária e utilização da medida que ora se anuncia em caso de inadimplência num determinado período a ser consensuado.

Preocupa-nos mais ainda, que ao lado dessa medida, outra poderá ser adotada: a interrupção do incentivo destinado a aids a partir de janeiro de 2014. Esta medida certamente reflete o caráter de prioridade que progressivamente vem o Brasil dando ao controle da epidemia, que passa cada vez mais a ser visto como mais um problema de saúde pública, no entendimento de que os avanços obtidos são suficientes; esta percepção contraria de modo concreto o entendimento que se tem sobre a urgente necessidade de rever e ampliar estratégias de ação tendo em vista as grandes lacunas observadas, às quais se somam a inequidade regional: a epidemia continua crescendo no Norte e Nordeste do país, do ponto de vista de sua incidência e taxas de mortalidade específica e a região Sul apresenta situação epidemiológica preocupante.

Revendo os compromissos assumidos pelo Brasil nas Assembleias Gerais das Nações Unidas e particularmente na última Assembleia, este seria o momento de se redobrar esforços e alocar mais recursos específicos com vistas a garantir o cumprimento da meta de acesso universal ao tratamento, prevenção e cuidados até 2015, ao que se somariam, obviamente, medidas que garantissem a celeridade e pertinência da aplicação dos recursos.

Em que pese os avanços, o Brasil não se encontra entre os países considerados de cobertura universal, segundo o último relatório da OMS/UNAIDS, em função do grande numero de cidadãos soropositivos para o HIV que, por não terem sido diagnosticados, desconhecem seu status e não estão sob tratamento.

Apesar do entendimento distinto, talvez por equívoco conceitual, também o acesso não é universal. Suficiente visitar o semiárido nordestino e a região Norte do país (e não apenas estes) para se constatar a carência de serviços que possibilitem o acesso a testagem e tratamento antirretroviral. Ora, se não há testagem ou disponibilidade local de medicamento ou se encontram a dias de viagem para que se possa aceder aos serviços, não podemos considera-los como acessíveis.  Todavia, em função de políticas públicas que anteriormente registramos, a disponibilidade de medicamentos tem sido assegurada pelo Ministério da Saúde em sua integralidade do ponto de vista orçamentário e logístico, com avanços excepcionais nos últimos doze meses no que concerne a continuidade no seu suprimento, sem registro de qualquer interrupção. 

Devemos ter claro que para cumprir os compromissos internacionalmente firmados pelo Brasil, o adequado aporte de recursos e sua utilização em prioridades epidemiologicamente estabelecidas é aspecto essencial a ser observado; a isto se deve somar a construção de estratégias inovadoras e mobilizadoras em âmbito nacional,  que envolvam os níveis políticos decisórios em todas instancias pertinentes e se repliquem em cada nível de governo de modo a ser implementado segundo a realidade local da epidemia. 

O UNAIDS enquanto instituição parceira, comprometida com o pleno alcance das metas globais em relação ao enfretamento da epidemia, para a qual a contribuição do Brasil se faz imprescindível, vem registrar sua preocupação e externar seu apelo para que alternativas sejam postas em práticas, na expectativa de que mais uma vez, o país volte a se despontar como referência de políticas públicas na área da AIDS.

Pedro Chequer
Coordenador do UNAIDS no Brasil

terça-feira, 23 de outubro de 2012

“Decretem nossa extinção e nos enterrem aqui”

É de cortar o coração e enfurecer a alma.
Beto Volpe

Descrição da imagem: grupo de Kayowas ostentando faixa com os dizeres "Basta de violência, demarquem nossas terras. Exigimos respeito."


"Pedimos ao Governo e à Justiça Federal para não decretar a ordem de despejo/expulsão, mas decretar nossa morte coletiva e enterrar nós todos aqui. Pedimos, de uma vez por todas, para decretar nossa extinção/dizimação total, além de enviar vários tratores para cavar um grande buraco para jogar e enterrar nossos corpos. Este é o nosso pedido aos juízes federais."

O trecho pertence à carta de um grupo de 170 indígenas que vivem à beira de um rio no município de Iguatemi, no Mato Grosso do Sul, cercados por pistoleiros. As palavras foram ditadas em 8 de outubro ao conselho Aty Guasu (assembleia dos Guaranis-Kaiowás), após receberem a notícia de que a Justiça Federal decretou sua expulsão da terra. São 50 homens, 50 mulheres e 70 crianças. Decidiram ficar. E morrer como ato de resistência – morrer com tudo o que são, na terra que lhes pertence.

Há cartas, como a de Pero Vaz de Caminha, de 1º de maio de 1500, que são documentos de fundação do Brasil: fundam uma nação, ainda sequer imaginada, a partir do olhar estrangeiro do colonizador sobre a terra e sobre os habitantes que nela vivem. E há cartas, como a dos Guaranis-Kaiowás, escritas mais de 500 anos depois, que são documentos de falência. Não só no sentido da incapacidade do Estado-nação constituído nos últimos séculos de cumprir a lei estabelecida na Constituição hoje em vigor, mas também dos princípios mais elementares que forjaram nosso ideal de humanidade na formação do que se convencionou chamar de “o povo brasileiro”. A partir da carta dos Guaranis-Kaiowás, tornamo-nos cúmplices de genocídio. Sempre fomos, mas tornar-se é saber que se é.

Os Guaranis-Kaiowás avisam-nos por carta que, depois de tantas décadas de luta para viver, descobriram que agora só lhes resta morrer. Avisam a todos nós que morrerão como viveram: coletivamente, conjugados no plural.

Nos trechos mais pungentes de sua carta de morte, os indígenas afirmam:
- Queremos deixar evidente ao Governo e à Justiça Federal que, por fim, já perdemos a esperança de sobreviver dignamente e sem violência em nosso território antigo. Não acreditamos mais na Justiça Brasileira. A quem vamos denunciar as violências praticadas contra nossas vidas? Para qual Justiça do Brasil? Se a própria Justiça Federal está gerando e alimentando violências contra nós. Nós já avaliamos a nossa situação atual e concluímos que vamos morrer todos, mesmo, em pouco tempo. Não temos e nem teremos perspectiva de vida digna e justa tanto aqui na margem do rio quanto longe daqui. Estamos aqui acampados a 50 metros do rio Hovy, onde já ocorreram 4 mortes, sendo que 2 morreram por meio de suicídio, 2 em decorrência de espancamento e tortura de pistoleiros das fazendas. Moramos na margem deste rio Hovy há mais de um ano. Estamos sem assistência nenhuma, isolados, cercados de pistoleiros e resistimos até hoje. Comemos comida uma vez por dia. Tudo isso passamos dia a dia para recuperar o nosso território antigo Pyleito Kue/Mbarakay. De fato, sabemos muito bem que no centro desse nosso território antigo estão enterrados vários de nossos avôs e avós, bisavôs e bisavós, ali está o cemitérios de todos os nossos antepassados. Cientes desse fato histórico, nós já vamos e queremos ser mortos e enterrados junto aos nossos antepassados aqui mesmo onde estamos hoje. (…) Não temos outra opção, esta é a nossa última decisão unânime diante do despacho da Justiça Federal de Navirai-MS.

Como podemos alcançar o desespero de uma decisão de morte coletiva? Não podemos. Não sabemos o que é isso. Mas podemos conhecer quem morreu, morre e vai morrer por nossa ação – ou inação. E, assim, pelo menos aproximar nossos mundos, que até hoje têm na violência sua principal intersecção.
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Desde o ínicio do século XX, com mais afinco a partir do Estado Novo (1937-45) de Getúlio Vargas, iniciou-se a ocupação pelos brancos da terra dos Guaranis-Kaiowás. Os indígenas, que sempre viveram lá, começaram a ser confinados em reservas pelo governo federal, para liberar suas terras para os colonos que chegavam, no que se chamou de “A Grande Marcha para o Oeste”. A visão era a mesma que até hoje persiste no senso comum: “terra desocupada” ou “não há ninguém lá, só índio”.

Era de gente que se tratava, mas o que se fez na época foi confiná-los como gado, num espaço de terra pequeno demais para que pudessem viver ao seu modo – ou, na palavra que é deles, Teko Porã (“o Bem Viver”). Com a chegada dos colonos, os indígenas passaram a ter três destinos: ou as reservas, ou trabalhar nas fazendas como mão de obra semiescrava ou se aprofundar na mata. Quem se rebelou foi massacrado. Para os Guaranis-Kaiowás, a terra a qual pertencem é a terra onde estão sepultados seus antepassados. Para eles, a terra não é uma mercadoria – a terra é.

Na ditadura militar, nos anos 60 e 70, a colonização do Mato Grosso do Sul se intensificou. Um grande número de sulistas, gaúchos mais do que todos, migrou para o território para ocupar a terra dos índios. Outros despacharam peões e pistoleiros, administrando a matança de longe, bem acomodados em suas cidades de origem, onde viviam – e vivem até hoje – como “cidadãos de bem”, fingindo que não têm sangue nas mãos.

Com a redemocratização do país, a Constituição de 1988 representou uma mudança de olhar e uma esperança de justiça. Os territórios indígenas deveriam ser demarcados pelo Estado no prazo de cinco anos. Como sabemos, não foi. O processo de identificação, declaração, demarcação e homologação das terras indígenas tem sido lento, sensível a pressões dos grandes proprietários de terras e da parcela retrógrada do agronegócio. E, mesmo naquelas terras que já estão homologadas, em muitas o governo federal não completou a desintrusão – a retirada daqueles que ocupam a terra, como posseiros e fazendeiros –, aprofundando os conflitos.

Nestas últimas décadas testemunhamos o genocídio dos Guaranis-Kaiowás. Em geral, a situação dos indígenas brasileiros é vergonhosa. A dos 43 mil Guaranis-Kaiowás, o segundo grupo mais numeroso do país, é considerada a pior de todas. Confinados em reservas como a de Dourados, onde cerca de 14 mil, divididos em 43 grupos familiares, ocupam 3,5 mil hectares, eles encontram-se numa situação de colapso. Sem poder viver segundo a sua cultura, totalmente encurralados, imersos numa natureza degradada, corroídos pelo alcoolismo dos adultos e pela subnutrição das crianças, os índices de homicídio da reserva são maiores do que em zonas em estado de guerra.

A situação em Dourados é tão aterradora que provocou a seguinte afirmação da vice-procuradora-geral da República, Deborah Duprat: “A reserva de Dourados é talvez a maior tragédia conhecida da questão indígena em todo o mundo”. Segundo um relatório do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), que analisou os dados de 2003 a 2010, o índice de assassinatos na Reserva de Dourados é de 145 para cada 100 mil habitantes – no Iraque, o índice é de 93 assassinatos para cada 100 mil. Comparado à média brasileira, o índice de homicídios da Reserva de Dourados é 495% maior.

A cada seis dias, um jovem Guarani-Kaiowá se suicida. Desde 1980, cerca de 1500 tiraram a própria vida. A maioria deles enforcou-se num pé de árvore. Entre as várias causas elencadas pelos pesquisadores está o fato de que, neste período da vida, os jovens precisam formar sua família e as perspectivas de futuro são ou trabalhar na cana de açúcar ou virar mendigos. O futuro, portanto, é um não ser aquilo que se é. Algo que, talvez para muitos deles, seja pior do que a morte.

Por Eliane Brum

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Viva a Vida



Pessoal, reproduzo belíssima homenagem do jornalista Liandro Lindner à ativista Sandra Perin, do Rio Grande do Sul, falecida semana passada em um acidente automobilístico.
Nossa saudade e nosso respeito a Sandra Perin.
Beto Volpe

Trajando preto, com olhar aguçado e um tanto desconfiado (qualidades essenciais de uma ativista) Sandra observa atentamente a fala de alguém e, pelo jeito, não estava gostando muito do que ouvia...


A expressão criada por Herbert Daniel era tradicional no final de suas falas e escritos. Mais do que uma combinação de quatro letras em duas palavras, o lema carrega um significado muito grande: apesar das dificuldades queremos viver, queremos vida e não vida ordinária, mas vida de qualidade. Foi c om esta expressão emblemática que Sandra encerrou sua fala no Seminário de Controle Social que o GAPA promoveu sábado, pouco tempo antes de embarcar para Erechim onde ia comemorar seu aniversário. Foi sua última participação numa atividade deste porte: reivindicatório, denunciador, organizador e acima de tudo de valorização da vida. E desta forma que ela se despediu naquele dia e, sem saber, da militância e da vida algumas horas depois. 

Ao longo de mais de vinte anos nos acostumamos com a presença da Sandra em nossa casa, na Cidade Baixa. Foram reuniões, capacitações, conversas, brigas, momentos de dor, sorrisos e lágrimas. Quantas vezes ela subia com dificuldade as escadas, sentava em frente a um computador e de sua dedicação surgiam projetos bem construídos ou prestações de contas elaboradas com cuidado. Sandra ocupou várias funções no GAPA, de administração, representação política, formação, decisão e de funções técnicas entre outras. Mas a que certamente mais a envolveu foi o acolhimento e aconselhamento. Ao longo do tempo centenas de pessoas foram atendidas por ela dividindo suas angústias e recebendo consolo, ouvidas com atenção e aconselhadas com cuidado, formando um ambiente de convivência e cumplicidade. Foi assim nos plantões pessoais, nos atendimentos psi, no projeto Buddy e até no contato com os companheiros de diretoria e voluntariado. Ouvir era um de seus principais traços e talvez a principal de suas peculiaridades. Mas Sandra não ficava somente nisto, juntando o sangue italiano com as características dos librianos fazia balançar os pratos da balança quando era preciso gritar por atenção a saúde pública ou brigar em favor dos direitos humanos. Um leão que rugia alto, mas que também acalentava, bem sintonizado com o leão de São Jerônimo, santo do seu dia de nascimento.

Nestes anos todo o GAPA se tornou uma extensão do lar de Sandra, e de sua própria vida, primeiro dividia o tempo com o trabalho nos presídios, depois da aposentadoria o tempo dedicado ficou maior. Era no GAPA que ela passava grande parte do tempo. Olhava atenta a transformação que a entidade passava, os usuários que continuavam batendo a porta, o desanimo que às vezes abatia os voluntários e principalmente os desafios que cresciam. Tendo o GAPA como parte de sua própria história pessoal sua preocupação grande era com a hipótese de fechamento da entidade, principalmente com o quadro adverso que a maioria das ONGs do Brasil hoje atravessa. Nem sempre suas posições eram compreendidas e brotavam discussões e caras feias, mas isto não impedia que o comprometimento maior fosse cumprido e que logo a rotina de atividades acabava por fechar as cicatrizes.

Era também no mesmo ambiente, nas salas do GAPA, que Sandra matutava sobre sua vida. Várias vezes nós a víamos falando sobre carências e carinhos, sobre desilusões amorosas, sobre conhecimentos e vontades e principalmente sobre desejos de um amor pleno. Já passando dos 50 Sandra conservava uma ingenuidade de menina quando o assunto era amor, diferente de muitos de nós incrédulos pelas experiências difíceis já vividas. E foi dentro de uma destas salas que ela foi contando devagar e depois com emoção crescente a retomada de um namoro de adolescência. Aos poucos seus sorrisos adquiriram um tom mais forte e ela queria dividir isto com todos os amigos, até que num impulso de entusiasmo relatou num longo e-mail que estava vivendo o amor da sua vida e retomando um rumo que ficou no passado há muitos anos.

Sandra estava feliz e continuava na luta. 

O somatório de suas vivências ao longo dos anos foi formando uma personalidade múltipla. O convívio no teatro atuando e produzindo abriram as portas da percepção para a diversidade do mundo, das pessoas, dos costumes. A militância partidária, de forma orgânica e engajada, a levaram a estudos profundos e envolvimento aguerrido como o partidão pedia naquela época. Após a formatura em psicologia e a o ingresso no Estado num concurso público, se tornou referência nacional na prevenção da Aids junto aos detentos do sistema carcerário gaúcho. Foi através de seu trabalho que se aproximou do GAPA acabando por consolidar a união do seu conhecimento técnico com a militância que os anos 90 tanto exigiam. As dificuldades de saúde enfrentadas por ela foram talvez os momentos mais tensos vividos, exigiam disciplina e força de vontade e não foram poucas as ocasiões em que ela se debateu em angústias enfrentando as limitações que encarava. Mas mesmo assim não temeu e continuou até o final seus processos logrando êxito em todos eles, causando a olhos vistos também uma importante mudança no seu perfil psicológico e no seu jeito de conviver.

Ativistas de todo o Brasil acostumaram com sua presença nos eventos e nas discussões. Os conselheiros que a acompanharam nestes espaços de controle social admiravam sua presença forte, muitos não entendendo como uma pessoa que não era soropositiva tinha tanto ardor na defesa desta população. Os participantes de suas diversas oficinas e capacitações aprenderam sobre solidariedade através de seus relatos e oportunidades de reflexão. Os companheiros de ativismo lembram suas colocações reivindicatórias na luta pelo controle da Aids, da tuberculose, da hepatites virais, das co-infecções, dos moradores de rua, usuários de drogas, na luta por vacinas Anti-HIV e tantas outras. Em cada canto da luta por saúde pública neste país há um pouco de Sandra Perin e em cada um de nós uma centelha do seu entusiasmo reside como teimosia, que nos faz não desistir mesmo diante de realidades complicadas.

Sua morte, no dia do seu aniversário, encerrando um ciclo da passagem terrena nos surpreendeu e emocionou. Primeiro pela forma com que ocorreu: imprevisível, incalculável, inesperada, quase como um susto destes que se quer sempre evitar. Depois por seu fim ter chegado no ápice de um ótimo momento de sua vida em que amava e era amada e estava colhendo os frutos de dedicação profissional, familiar e de amizades. Os mistérios da vida e da morte que não sabemos responder, restando apenas à certeza de que Sandra estava feliz quando encerrou sua jornada.

Mesmo diante da morte a luta dos teimosos não deve se abalar. Inspirados no exemplo de Sandra que venceu barreiras pessoais e ajudou a derrotar dificuldades institucionais, estamos todos tentando superar sua perda e continuar o caminho que ela ajudou a construir. Não somos super heróis, a dor da perda nos consome, a realidade da morte nos toca, a finitude humana inesperada nos revolta, o descaso público e a insensatez humana nos agride. Mas acima de tudo sempre lembraremos de Sandra resumindo nossa luta na expressão que ela usou em sua última fala em público, acima do adeus e além dos muros a derrubar queremos viver e oferecer o melhor, por isto sempre repetiremos com ela “ Viva a Vida” 

Liandro Lindner, outubro de 2012