É de cortar o coração e enfurecer a alma.
Beto Volpe
Descrição
da imagem: grupo de Kayowas ostentando faixa com os dizeres "Basta de
violência, demarquem nossas terras. Exigimos respeito."
"Pedimos ao Governo e à Justiça Federal para não decretar a
ordem de despejo/expulsão, mas decretar nossa morte coletiva e enterrar
nós todos aqui. Pedimos, de uma vez por todas, para decretar nossa
extinção/dizimação total, além de enviar vários tratores para cavar um
grande buraco para jogar e enterrar nossos corpos. Este é o nosso pedido
aos juízes federais."
O trecho pertence à carta de um grupo de 170 indígenas que vivem à beira de um rio no município
de Iguatemi, no Mato Grosso do Sul, cercados por pistoleiros. As
palavras foram ditadas em 8 de outubro ao conselho Aty Guasu (assembleia
dos Guaranis-Kaiowás), após receberem a notícia de que a Justiça
Federal decretou sua expulsão da terra. São 50 homens, 50 mulheres e 70
crianças. Decidiram ficar. E morrer como ato de resistência – morrer com
tudo o que são, na terra que lhes pertence.
Há cartas, como a de Pero Vaz de Caminha, de 1º de maio de 1500, que
são documentos de fundação do Brasil: fundam uma nação, ainda sequer
imaginada, a partir do olhar estrangeiro do colonizador sobre a terra e
sobre os habitantes que nela vivem. E há cartas, como a dos
Guaranis-Kaiowás, escritas mais de 500 anos depois, que são documentos
de falência. Não só no sentido da incapacidade do Estado-nação
constituído nos últimos séculos de cumprir a lei estabelecida na
Constituição hoje em vigor, mas também dos princípios mais elementares
que forjaram nosso ideal de humanidade na formação do que se
convencionou chamar de “o povo brasileiro”. A partir da carta dos
Guaranis-Kaiowás, tornamo-nos cúmplices de genocídio. Sempre fomos, mas
tornar-se é saber que se é.
Os Guaranis-Kaiowás avisam-nos por carta que, depois de tantas
décadas de luta para viver, descobriram que agora só lhes resta morrer.
Avisam a todos nós que morrerão como viveram: coletivamente, conjugados
no plural.
Nos trechos mais pungentes de sua carta de morte, os indígenas afirmam:
Nos trechos mais pungentes de sua carta de morte, os indígenas afirmam:
- Queremos deixar evidente ao Governo e à Justiça Federal que,
por fim, já perdemos a esperança de sobreviver dignamente e sem
violência em nosso território antigo. Não acreditamos mais na Justiça
Brasileira. A quem vamos denunciar as violências praticadas contra
nossas vidas? Para qual Justiça do Brasil? Se a própria Justiça Federal
está gerando e alimentando violências contra nós. Nós já avaliamos a
nossa situação atual e concluímos que vamos morrer todos, mesmo, em
pouco tempo. Não temos e nem teremos perspectiva de vida digna e justa
tanto aqui na margem do rio quanto longe daqui. Estamos aqui acampados a
50 metros do rio Hovy, onde já ocorreram 4 mortes, sendo que 2 morreram
por meio de suicídio, 2 em decorrência de espancamento e tortura de
pistoleiros das fazendas. Moramos na margem deste rio Hovy há mais de um
ano. Estamos sem assistência nenhuma, isolados, cercados de pistoleiros
e resistimos até hoje. Comemos comida uma vez por dia. Tudo isso
passamos dia a dia para recuperar o nosso território antigo Pyleito
Kue/Mbarakay. De fato, sabemos muito bem que no centro desse nosso
território antigo estão enterrados vários de nossos avôs e avós, bisavôs
e bisavós, ali está o cemitérios de todos os nossos antepassados.
Cientes desse fato histórico, nós já vamos e queremos ser mortos e
enterrados junto aos nossos antepassados aqui mesmo onde estamos hoje.
(…) Não temos outra opção, esta é a nossa última decisão unânime diante
do despacho da Justiça Federal de Navirai-MS.
Como podemos alcançar o desespero de uma decisão de morte coletiva?
Não podemos. Não sabemos o que é isso. Mas podemos conhecer quem morreu,
morre e vai morrer por nossa ação – ou inação. E, assim, pelo menos
aproximar nossos mundos, que até hoje têm na violência sua principal
intersecção.
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Desde o ínicio do século XX, com mais afinco a partir do Estado Novo
(1937-45) de Getúlio Vargas, iniciou-se a ocupação pelos brancos da
terra dos Guaranis-Kaiowás. Os indígenas, que sempre viveram lá,
começaram a ser confinados em reservas pelo governo federal, para
liberar suas terras para os colonos que chegavam, no que se chamou de “A
Grande Marcha para o Oeste”. A visão era a mesma que até hoje persiste
no senso comum: “terra desocupada” ou “não há ninguém lá, só índio”.
Era de gente que se tratava, mas o que se fez na época foi
confiná-los como gado, num espaço de terra pequeno demais para que
pudessem viver ao seu modo – ou, na palavra que é deles, Teko Porã (“o
Bem Viver”). Com a chegada dos colonos, os indígenas passaram a ter três
destinos: ou as reservas, ou trabalhar nas fazendas como mão de obra
semiescrava ou se aprofundar na mata. Quem se rebelou foi massacrado.
Para os Guaranis-Kaiowás, a terra a qual pertencem é a terra onde estão
sepultados seus antepassados. Para eles, a terra não é uma mercadoria – a
terra é.
Na ditadura militar, nos anos 60 e 70, a colonização do Mato Grosso
do Sul se intensificou. Um grande número de sulistas, gaúchos mais do
que todos, migrou para o território para ocupar a terra dos índios.
Outros despacharam peões e pistoleiros, administrando a matança de
longe, bem acomodados em suas cidades de origem, onde viviam – e vivem
até hoje – como “cidadãos de bem”, fingindo que não têm sangue nas mãos.
Com a redemocratização do país, a Constituição de 1988 representou
uma mudança de olhar e uma esperança de justiça. Os territórios
indígenas deveriam ser demarcados pelo Estado no prazo de cinco anos.
Como sabemos, não foi. O processo de identificação, declaração,
demarcação e homologação das terras indígenas tem sido lento, sensível a
pressões dos grandes proprietários de terras e da parcela retrógrada do
agronegócio. E, mesmo naquelas terras que já estão homologadas, em
muitas o governo federal não completou a desintrusão – a retirada
daqueles que ocupam a terra, como posseiros e fazendeiros –,
aprofundando os conflitos.
Nestas últimas décadas testemunhamos o genocídio dos
Guaranis-Kaiowás. Em geral, a situação dos indígenas brasileiros é
vergonhosa. A dos 43 mil Guaranis-Kaiowás, o segundo grupo mais numeroso
do país, é considerada a pior de todas. Confinados em reservas como a
de Dourados, onde cerca de 14 mil, divididos em 43 grupos familiares,
ocupam 3,5 mil hectares, eles encontram-se numa situação de colapso. Sem
poder viver segundo a sua cultura, totalmente encurralados, imersos
numa natureza degradada, corroídos pelo alcoolismo dos adultos e pela
subnutrição das crianças, os índices de homicídio da reserva são maiores
do que em zonas em estado de guerra.
A situação em Dourados é tão aterradora que provocou a seguinte
afirmação da vice-procuradora-geral da República, Deborah Duprat: “A
reserva de Dourados é talvez a maior tragédia conhecida da questão
indígena em todo o mundo”. Segundo um relatório do Conselho Indigenista
Missionário (CIMI), que analisou os dados de 2003 a 2010, o índice de
assassinatos na Reserva de Dourados é de 145 para cada 100 mil
habitantes – no Iraque, o índice é de 93 assassinatos para cada 100 mil.
Comparado à média brasileira, o índice de homicídios da Reserva de
Dourados é 495% maior.
A cada seis dias, um jovem Guarani-Kaiowá se suicida. Desde 1980,
cerca de 1500 tiraram a própria vida. A maioria deles enforcou-se num pé
de árvore. Entre as várias causas elencadas pelos pesquisadores está o
fato de que, neste período da vida, os jovens precisam formar sua
família e as perspectivas de futuro são ou trabalhar na cana de açúcar
ou virar mendigos. O futuro, portanto, é um não ser aquilo que se é.
Algo que, talvez para muitos deles, seja pior do que a morte.
Por Eliane Brum
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