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Sou muito humorado. Se bem ou mal, depende da situação...

Em 1989 o HIV invadiu meu organismo e decretou minha morte em vida. Desde então, na minha recusa em morrer antes da hora, muito aconteceu. Abuso de drogas e consequentes caminhadas à beira do abismo, perda de muitos amigos e amigas, tratamentos experimentais e o rótulo de paciente terminal aos 35 quilos de idade. Ao mesmo tempo surgiu o Santo Graal, um coquetel de medicamentos que me mantém até hoje em condições de matar um leão e um tigre por dia, de dar suporte a meus pais que se tornaram idosos nesse tempo todo e de tentar contribuir com a luta contra essa epidemia que está sob controle.



Sob controle do vírus, naturalmente.



Aproveite o blog!!!



Beto Volpe



quarta-feira, 30 de outubro de 2013

FALA DA RNP+ SP POR OCASIÃO DO EVENTO 30 ANOS DE RESPOSTAS POSITHIVAS

Queridos e queridas. Compartilho com vocês, bastante orgulhoso e de alma lavada, a fala do ativista Paulo Roberto Giacomini na abertura do evento "30 Anos da Respostas Posithivas" que está rolando em Sampa. Disse tudo.
Beto Volpe 
 
 
Quero cumprimentar a Dra. Maria Clara Gianna, coordenadora do Programa Estadual de DST/AIDS de São Paulo e ao Dr. David Uip, Secretário de Estado da Saúde de São Paulo, por meio de quem cumprimento a toda a mesa.

Quero dedicar esta fala à paulista Gabriela
Leite. Gabi, essa é pra você.

Senhoras, senhores,

Estamos todas e todos aqui para celebrar os 30 anos da
primeira resposta à epidemia de AIDS no Brasil. Celebramos
os 30 anos de um programa de controle de uma epidemia
construído sob os pilares da participação social, cara
bandeira da Reforma Sanitária em 1983, agregada à
Constituição Federal cinco anos depois em todo escopo da
Saúde Pública brasileira.

Celebramos os 30 anos da primeira resposta brasileira à
epidemia, mas também os mais de 20 anos que São Paulo foi
o primeiro Estado brasileiro a distribuir antirretrovirais
às pessoas vivendo com HIV e AIDS. Celebramos, neste ato, o
embrião do que posteriormente foi premiado como o Melhor
Programa de AIDS do mundo, principalmente pelo pioneirismo e
pela inovação.

Pioneiro e inovador justamente por acreditar, num país
então de baixa renda, que distribuir antirretrovirais
manteria a vida das pessoas acometidas por uma doença até
hoje mortal e reduziria a transmissão do vírus, o que de
fato aconteceu em maiores ou menores
proporções.

Celebramos a criação de um programa construído, tijolo
por tijolo de sua estrutura, sob a égide dos Direitos
Humanos, da atenção integral às pessoas acometidas pelo
vírus da AIDS e pelo respeito às escolhas individuais
destes mesmos seres humanos. A partir de 1983, no Estado de
São Paulo, não era preciso carteira de trabalho assinada,
não era preciso ser trabalhador para ter-se atenção
integral à saúde se portador ou portadora do vírus HIV.
Muito pelo contrário. A partir daquele ano, há 30 anos,
para receber atenção integral e tratamento digno era
possível ser homossexual, usuário de droga, prostituta ou
hemofílico, sem o menor constrangimento.

Faz-se imprescindível ressaltar essas
características em tempos em que se ignoram os Direitos
Humanos e que acordos pela garantia de votos são mais
importantes que a Saúde Pública de 200 milhões de
brasileiros, tempo em que a religiosidade começa a
mostrar-se mais laica que o próprio
Estado.

É tempo de celebração. Celebramos aqui importantes
vitórias da luta contra a AIDS em todo o Estado de São
Paulo e em todo o Brasil. Por isso, é muito importante,
também, que lembremos e apontemos alguns gargalos.

O primeiro gargalo é o mais profundo esquecimento dos
Direitos Humanos como pilar da resposta brasileira à
epidemia. Quando campanhas e materiais dirigidos a
populações altamente vulneráveis ao HIV são censurados,
desrespeita-se o cidadão, o contribuinte e o consumidor. E
diz-se, com o silêncio, um enorme palavrão às
populações cuja autonomia e Direitos Humanos foram
propositalmente esquecidos.

Outro gargalo está no tempo de espera entre o
diagnóstico positivo para o HIV e a primeira consulta com
um infectologista em um Serviço de Atendimento
Especializado, serviços estes organizados a partir dos anos
90. No entanto, ao invés de se falar em expansão de
profissionais e serviços, fala-se em transferir essa
atenção especializada para a Atenção Básica. O Estado
de São Paulo, como pioneiro na resposta à epidemia de AIDS
no Brasil tem de dizer um rotundo não a essa pauperização
da atenção integral às pessoas vivendo com HIV e AIDS.
Quem sabe, no dia em que a Atenção Básica fizer a
abordagem sindrômica das doenças sexualmente
transmissíveis e perder o medo de diagnosticar e tratar a
sífilis congênita esta mudança venha a ser oportuna. A
AIDS se cronificou, mas não se tornou uma gripe. Não por
enquanto. Por isso, não é a resposta das pessoas que vivem
com HIV e AIDS no Estado de São Paulo. Não é a resposta
das Pessoas Vivendo com HIV e AIDS no
Brasil.

Um terceiro gargalo está no mais completo desaparecimento
dos profissionais capacitados para proceder às cirurgias
contra a lipodistrofia, o que vem acarretando depressão e
certamente acarretará em mais mortes por abandono do
acompanhamento médico e do tratamento antirretroviral.

Há outros gargalos. Por exemplo, o da falta de laicidade do
Estado e de alguns profissionais de Saúde que injetam doses
cavalares de moral, religião e costumes em suas consultas,
que mais parecem preleções religiosas. A Saúde Pública
tem de ser isenta. Isenta de partidos políticos, de
governos, de religiões e de crenças.

Mas um dos maiores gargalos se configura no aconselhamento, que
deve olhar para o indivíduo enquanto sujeito de direitos e
não enquanto sujeito que pode vir a ter direitos se adotar
os comportamentos prescritos. Deve-se prescrever a adoção
de práticas sexuais seguras, de estratégias de promoção
da saúde e de prevenção de doenças. Mas não se pode
prescrever o isolamento e a invisibilidade. 
O isolamento esvazia o movimento social. A invisibilidade
descaracteriza e esfria a participação social. Juntos, o
isolamento e a invisibilidade se fortalecem e nos
enfraquece. Não apenas a nós, das redes de pessoas vivendo
com HIV e AIDS; não apenas a nós das ONG que trabalham com
as questões em torno da AIDS. Mas enfraquece trabalhadores
e gestores da saúde. Enfraquece o nosso já tão combalido
Sistema Único de Saúde.

Está em consulta pública o novo consenso brasileiro
para tratamento antirretroviral. O documento incentiva
prescritores de antirretrovirais a estimular o início da
terapia de alta potência já a partir do diagnóstico. É
preciso mais do que estimular. É preciso incentivar,
motivar as pessoas com HIV e AIDS não apenas aderirem à
medicação e ao tratamento, mas à luta.

Porque apesar de tantas vitórias, ainda precisamos de
muita luta. Precisamos lutar pela manutenção de nossos
medicamentos; precisamos lutar pela manutenção de nossos
serviços; precisamos lutar pela manutenção de nossos
profissionais de saúde; precisamos lutar pela manutenção
das ações de prevenção e de assistência desenvolvidas
pelas ONG. Precisamos lutar pela manutenção da resposta,
pelo pioneirismo e pela inovação baseados nas evidências
contextualizadas da realidade brasileira. Porque ainda hoje,
mais do que nunca, precisamos lutar pela manutenção da
vida. Das nossas vidas. Viver com AIDS é possível, com a
invisibilidade, o isolamento e o abandono, não.

E já que parodiei um slogan governamental, termino parodiando
um slogan nosso, da Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV
e AIDS: um dia, no passado, já nos escondemos para morrer.
Hoje, mais do que nunca, precisamos nos mostrar para viver!

Obrigado.



quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Identificadas novas e mais perigosas variações do HIV

Pois é, pessoal. Na onda do 'vai da valsa' o HIV se prepara para uma nova investida contra os seres humanos. Bom artigo de Márcio Caparica no site 'Lado Bi'.
Beto Volpe
Descrição da imagem: imagens do vírus em tamanhos decrescentes.
Cientistas do Brasil e da Rússia alertam para riscos, que complicam a vida mesmo de quem já é soropositivo
O ritmo de crescimento de novas infecções do vírus HIV vem caindo mundialmente. Infelizmente, com isso, o hábito de se praticar sexo seguro também, como qualquer um que está no mercado percebe facilmente. Muita gente continua achando que contrair DSTs é algo que acontece com “os outros”. Talvez pior ainda, tem gente que já decidiu que se tornar soropositivo não é um problema tão grande assim – pode-se tomar remédios pelo resto da vida “sem problema” e, ueba!, agora que já infectou mesmo, não tem mais por que usar camisinha.
Errado. O vírus HIV é conhecidamente propenso a mutações, o que dificulta bastante seu tratamento e os esforços para se criar uma vacina. Tratamentos que funcionam bem com uma variante do vírus podem não funcionar com outra. Por isso que também é importante evitar a reinfecção.
Uma pesquisa divulgada ontem (22) e realizada em conjunto pela USP e pela Unifesp constatou que há novas variações do virus HIV circulando na população brasileira. Os cientistas acompanharam crianças e adolescentes que tiveram uma infecção vertical do vírus – o contraíram durante a amamentação ou durante o parto – e identificaram nelas variações mosaico do HIV. Ou seja, virus que são misturas de dois tipos diferentes do HIV.
“Como essas crianças, em geral, contraíram o vírus há menos tempo que os adultos, há cerca de 11 anos em média, nossa hipótese é de que os vírus circulantes no Brasil estão ganhando diversidade genética”, explicou Esper Kallás, professor da disciplina de Imunologia Clínica e Alergia da Faculdade de Medicina da USP. ”E essa é uma fotografia de uma transmissão que ocorreu há mais de uma década. Hoje a variabilidade pode estar ainda maior.”
Cientistas russos também anunciaram recentemente a descoberta de uma nova variação do vírus HIV, identificada como 02_AG/A, que é ainda mais infecciosa que as variedades conhecidas até então. Encontrado pela primeira vez na cidade de Novosibirsk, na Sibéria, em 2006, esse novo vírus vem se espalhando pela região e áreas adjacentes rapidamente, sendo responsável por mais de 50% das novas infecções lá. O número de soropositivos que vivem na região de Novosibirsk saltou de aproximadamente 2 mil em 2007 para 15 mil em 2012, segundo o Centro Federal de AIDS da Rússia.
Segundo a ONU, as únicas regiões em que o número de novas infecções do HIV está crescendo é a Europa Oriental e a Ásia Central. Isso se deve à falta de verbas para a prevenção e tratamento, e à quase total falta de educação sobre o assunto. As escolas russas oferecem quase nenhuma educação sexual às crianças. Há até quem se oponha a qualquer tipo de educação sexual nas escolas de lá dizendo que a literatura russa “é a melhor educação sexual que existe”.
Eles ainda têm a desculpa da ignorância. Nós, brasileiros, não temos. Não há justificativa para qualquer comportamento que coloque em risco você mesmo – ou quem está junto de você.
Saiba mais com o Lado Bi do HIV e o Lado Bi da Rússia.

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

“Cannabis é remédio”

Compartilho interessante artigo de Ana Aranha publicado no site Yahoo.
Beto Volpe
Descrição da imagem: foto de Thaís sorridente com sua filha no colo.
Thaís Carvalho viveu, ao mesmo tempo, a melhor e a pior experiências de sua vida. No mesmo dia em que segurou sua filha no colo pela primeira vez, descobriu um câncer no ovário. Duas semanas depois do parto, uma cirurgia retirou todo seu aparelho reprodutivo. Com um bebê recém nascido e uma prescrição para seis meses de quimioterapia, as mudanças abalaram seu jeito de ver o mundo. E lhe levaram a uma descoberta desconhecida para a maior parte dos brasileiros.
Paraense, hoje com 33 anos, Thaís é filha de uma família que classifica como tradicional. Vegetariana, ela não bebe e gosta de passar os finais de semana em casa. Quando voltou do hospital, estava em estado de encantamento com a primeira filha. Ficou triste em saber que não poderia amamenta-la, devido ao medicamento, mas tentou manter-se positiva. Logo descobriu que também não poderia dar banho na menina ou trocar a fralda, pois seus braços perderam a força. Com dores pelo corpo e enjoo, já no primeiro mês de tratamento Thaís parou de comer e perdeu muito peso. Perdeu também os cachos morenos e o sorriso tranquilo. Pela manhã, só levantava da cama para atravessar a rua e buscar ajuda na casa de sua mãe, que mora na mesma vila, em Belém.
Suas roupas ficaram largas, o rosto inchado e pálido. Quando olhava os olhos sem sobrancelhas no espelho, vinha a certeza de que não demoraria para ser abandonada pelo marido, que chegava à noite do trabalho e corria para cuidar dela, da filha e da casa. “Eu me sentia feia, fraca, minha casa estava largada. Estava definhando”.
Foi nesse momento que seu marido lhe chamou para uma conversa. Ele pesquisou sobre como os médicos americanos prescrevem o uso de maconha (Cannabis é o nome científico da planta) para combater os efeitos colaterais da quimioterapia. Thaís teve muitos receios. Ela nunca tinha experimentado a droga. Alguns amigos fumavam, mas ela não sabia qual seria sua reação. “Eu sempre vi a maconha como algo negativo, não queria isso para mim”.
Só quando recebeu a terceira dose de quimio e os efeitos castigaram ainda mais seu corpo frágil, ela resolveu experimentar. “No primeiro dia, senti relaxamento e bem estar, mas não arrisquei fazer nada, não conhecia os efeitos. No segundo dia, senti ânimo e levantei. Tinha uma pilha de louça pra lavar na cozinha e ataquei empolgada. Feliz em dar conta de uma tarefa cotidiana”.
A partir de então, Thaís passou a fumar um cigarro de maconha pela manhã durante a “semana crítica” (os dias em que os efeitos colaterais da quimioterapia são mais intensos). Para o seu corpo, a mudança mais importante foi o fim da náusea que lhe impedia de comer. Pelo contrário, Thaís tinha mais fome. Ela ganhou peso, o que deu uma nova perspectiva para o seu tratamento.
O ciclo de medicação previsto incialmente era de 21 dias entre as doses. Devido à perda excessiva de peso já na primeira aplicação, seu médico oncologista adiou a segunda sessão de quimioterapia para 30 dias depois da primeira. Ele também teve que adiar a terceira, que só ocorreu 45 dias depois da segunda. Só quando passou a fumar maconha, e voltou a comer, o corpo de Thaís teve energia para aguentar o intervalo recomendado inicialmente pelo médico: 21 dias entre cada sessão.
Na memória de Thaís, porém, o efeito mais importante foi a mudança no seu bem estar. Antes, com dores constantes e incapaz de realizar tarefas simples, ela colocava um peso negativo em tudo. Até no esforço do marido, como se os cuidados que ela exigia fossem algo insuportável para ele. Com a possibilidade de realizar pequenas tarefas, aos poucos, ela conseguiu mudar essa percepção. “Comecei a ver que meu marido era admirável ao cuidar de mim e da nossa filha tão pequena. A dedicação dele passou a me dar força”.
Thaís nunca sentiu “nóia”, nome dado às sensações de paranoia que alguns experimentam ao fumar maconha. A sensação pode levar a um efeito oposto: percepção negativa do mundo. Sem saber como sua frágil saúde poderia ser afetada pela substância, ela tomou coragem para conversar com o médico. “Se te faz bem, quem sou eu pra mandar parar? ”, ouviu. “Vi que ele não concordou, mas preferiu se abster. Ele disse que esse tratamento não existe no Brasil. Mas eu falei que ele deveria se informar, mesmo que não possa recomendar, todo médico deve saber das últimas pesquisas”. E saiu do consultório sem orientação.
Para defender sua saúde, Thaís rompeu uma fronteira da ciência que está em reconfiguração no mundo. O uso da maconha em tratamentos médicos está em debate em diversos países e já é autorizado na Holanda, em Israel e na República Tcheca. Nos Estados Unidos, 18 estados permitem o uso terapêutico, número que cresce a cada ano. Na semana passada em Nova Iorque, onde esse debate está pegando fogo, 600 médicos lançaram um manifesto pedindo autorização para tratar pacientes com doenças como câncer, esclerose múltipla e HIV/Aids. Em seu site, o grupo elenca pesquisas e estudos controlados sobre como os efeitos da maconha podem reduzir a dor, o espasmo muscular, a sensação de náusea e estimular o apetite.
Em português, no livro “Maconha Cérebro e Saúde”, os neurocientistas Renato Malcher-Lopes e Sidarta Ribeiro apresentam os efeitos da substância e fazem um panorama dos estudos internacionais sobre seus potenciais terapêuticos. Cientistas brasileiros também tentam fazer pesquisas com a maconha, mas esbarram em dificuldades legais e acadêmicas. É o caso de um dos maiores especialistas no tema, o professor Elisaldo Carlini, da Universidade Federal de São Paulo. Nessa entrevista para revista da Fapesp, ele explica os efeitos da substância e defende o uso médico.
Thaís sabe da importância da maconha no seu tratamento. E decidiu não ficar calada. Ela já recuperou a saúde e os cachos no cabelo. Enquanto dava entrevista, sua filha, hoje com três anos, não parava de chamar a mãe para brincar. Quando perguntei se não tinha medo de dar o nome e mostrar o rosto para este texto, ela não vacilou. “Seria hipocrisia. Vejo as pessoas na linha de frente lutando pela descriminalização, enquanto tantos fumam e têm medo de mostrar a cara. Não quero ser a maioria silenciosa. Quero ser parte da minoria que contribuiu para a mudança”. Embora não tema falar no assunto, ela prefere usar o termo científico Cannabis, pois considera que maconha é uma palavra carregada de preconceitos.
Thaís é a favor da descriminalização para uso medicinal, mas também para qualquer outro. “Não faço uso recreativo, mas não tenho preconceito”, diz. No ano passado, estava no pequeno grupo que tentou fazer a Marcha da Maconha no centro de Belém. A mesma marcha, que ocorre em mais de 40 cidades no Brasil, vai acontecer em São Paulo nesse sábado dia 8.
Mais difícil que enfrentar as ruas, é reunir forças para ter uma conversa na casa dos pais. Quando contou que estava fumando durante o tratamento, o pai de Thaís ficou em silêncio, a mãe lhe criticou. Depois que viu sua melhora, a mãe não tocou mais no assunto. Mas agora é o pai de Thaís, com 62 anos, que terá de passar por um tratamento de quimioterapia. “Minha família é bastante conservadora, não sei se ele vai querer. Mas vou conversar, acho que as pessoas têm direito a essa escolha”.
Daqui a muitos anos, ela pretende conversar também com a sua filha, explicar que a maconha não deve ser vista com preconceito, mas com respeito e cuidado. Thaís sabe que a menina vai receber lições maniqueístas na escola. Dos adultos, vai ouvir que a maconha é algo ruim e que sempre faz mal. De alguns amigos, o extremo oposto. Dentro de casa, a menina vai conhecer a verdade experimentada por sua mãe: “Cannabis é remédio”.

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Para quem tem pais idosos

Pessoal, compartilho com vocês um texto do Fabrício Carpinejar sobre o tempo, a doença, a finitude. Emocionante.

Beto Volpe


Há uma quebra na história familiar onde as idades se acumulam e se sobrepõem e a ordem natural não tem sentido: é quando o filho se torna pai de seu pai.É quando o pai envelhece e começa a trotear como se estivesse dentro de uma névoa. Lento, devagar, impreciso.

É quando aquele pai que segurava com força nossa mão já não tem como se levantar sozinho. É quando aquele pai, outrora firme e intransponível, enfraquece de vez e demora o dobro da respiração para sair de seu lugar. É quando aquele pai, que antigamente mandava e ordenava, hoje só suspira, só geme, só procura onde é a porta e onde é a janela - tudo é corredor, tudo é longe. É quando aquele pai, antes disposto e trabalhador, fracassa ao tirar sua própria roupa e não lembrará de seus remédios.

E nós, como filhos, não faremos outra coisa senão trocar de papel e aceitar que somos responsáveis por aquela vida. Aquela vida que nos gerou depende de nossa vida para morrer em paz. Todo filho é pai da morte de seu pai. Ou, quem sabe, a velhice do pai e da mãe seja curiosamente nossa última gravidez. Nosso último ensinamento. Fase para devolver os cuidados que nos foram confiados ao longo de décadas, de retribuir o amor com a amizade da escolta.

E assim como mudamos a casa para atender nossos bebês, tapando tomadas e colocando cercadinhos, vamos alterar a rotina dos móveis para criar os nossos pais. Uma das primeiras transformações acontece no banheiro. Seremos pais de nossos pais na hora de pôr uma barra no box do chuveiro. A barra é emblemática. A barra é simbólica. A barra é inaugurar um cotovelo das águas. Porque o chuveiro, simples e refrescante, agora é um temporal para os pés idosos de nossos protetores. Não podemos abandoná-los em nenhum momento, inventaremos nossos braços nas paredes.

A casa de quem cuida dos pais tem braços dos filhos pelas paredes. Nossos braços estarão espalhados, sob a forma de corrimões. Pois envelhecer é andar de mãos dadas com os objetos, envelhecer é subir escada mesmo sem degraus. Seremos estranhos em nossa residência. Observaremos cada detalhe com pavor e desconhecimento, com dúvida e preocupação. Seremos arquitetos, decoradores, engenheiros frustrados. Como não previmos que os pais adoecem e precisariam da gente? Nos arrependeremos dos sofás, das estátuas e do acesso caracol, nos arrependeremos de cada obstáculo e tapete.

E feliz do filho que é pai de seu pai antes da morte, e triste do filho que aparece somente no enterro e não se despede um pouco por dia. Meu amigo José Klein acompanhou o pai até seus derradeiros minutos. No hospital, a enfermeira fazia a manobra da cama para a maca, buscando repor os lençóis, quando Zé gritou de sua cadeira:

— Deixa que eu ajudo.

Reuniu suas forças e pegou pela primeira vez seu pai no colo. Colocou o rosto de seu pai contra seu peito. Ajeitou em seus ombros o pai consumido pelo câncer: pequeno, enrugado, frágil, tremendo. Ficou segurando um bom tempo, um tempo equivalente à sua infância, um tempo equivalente à sua adolescência, um bom tempo, um tempo interminável. Embalou o pai de um lado para o outro. Aninhou o pai. Acalmou o pai. E apenas dizia, sussurrado:

— Estou aqui, estou aqui, pai!

O que um pai quer apenas ouvir no fim de sua vida é que seu filho está ali.


Nossos ídolos não são mais os mesmos (e as aparências enganam, sim...)


Descrição da imagem: foto do senador sendo ungido pelo pastor em um templo religioso.

Quando vi a foto do Senador da República Lindberg Farias, ex liderança da UNE e dos caras pintadas, recebendo a unção do pastor Silas Malafaia, notório fundamentalista religioso, achei que, enfim, havia chegado o fundo do poço. O poço das decepções e tristezas ao ver tanta insanidade partindo de gente que um dia eu idolatrei, fervi na primeira fileira de shows e de quem absorvi muito ensinamento e paixão pela vida, louca vida. Gente que um dia me fez acreditar em um mundo melhor, que nos agrupando em partidos e organizações seríamos capazes de transformar o mundo. E nesse frio, úmido e profundo buraco em que me encontro o som que me vem à lembrança é que, assim como Belchior, hoje eu sei que quem me deu a ideia de uma nova consciência e juventude está em casa, guardado por Deus, contando vil metal.

Há um bom tempo acho que Caetano Veloso vem dando sinais de uma inversão em seus históricos valores libertários e humanistas. Primeiro ele defendeu os violentos mascarados das manifestações populares afrontando a recém falecida Norma Benguell e tantas outras bravas pessoas que, em plena ditadura militar, saíram às ruas com os rostos expostos, em um tempo que haveria motivos para o anonimato. Tirou foto mascarado e tudo, arrotando liberdade. Agora ele e outros artistas igualmente marcantes em minha vida como Chico, Gil, Roberto e o Tremendão entre outros e outras, querem proibir biografias que não sejam por eles autorizadas. Ah, tá. Então só vale a palavra do biografado, é isso? Coisinha mais Geisel, onde está o 'é proibido proibir'? O nome disso é um só, CENSURA. Por isso cuidado, meu bem... Há perigo na esquina.

Lobão embalou muita noitada nos tempos em que morei em Sampa, década de oitenta. Tudo a ver com avenidas, luzes, agitação e drogas, muitas drogas. Uma dependência com gosto de liberdade. Mas, como nem sempre se vê lágrimas no escuro, eu também não via um grande reaça debaixo daquela pele de transgressão. Falar que os torturadores da ditadura militar são perseguidos e que eles apenas arrancaram algumas unhas é um ultraje aos fatos trazidos à tona pela Comissão da Verdade, fatos que são uma verdadeira vergonha da história recente do Brasil. Fora várias outras insanidades em seu livro que deveria se chamar "Decadence sans elegance", apropriado para um oportunista de mão cheia... de dedos.

O que dizer do companheiro maior apertando a mão de Maluf? Aquilo foi uma lufada que abalou minha estrutura familiar. Meus pais são malufistas desde a ARENA e eu PT de primeira hora e agora ando pela hora da morte. Nossa relação foi um tanto tumultuada em minha juventude até que a maturidade nos trouxe o entendimento na discordância. Aí o Roberto Jefferson vai na CPI e, súbito, o discurso da ética caía em cheio no colo da direita que tanto abomino e que meus pais tanto se identificaram. Ter que ouvir 'Cadê a ética de seu partido?' a cada noticiário e/ou refeição doeu demais, acreditem.

Não bastasse isso foi sacramentada em nome do Pai a composição da base governista com os partidos liderados por fundamentalistas religiosos. E a fúria de Levíticos caiu sobre as ações de prevenção à AIDS e se estabeleceu na Comissão de Direitos Humanos do Congresso Nacional, na forma de Vanessão. Nesse caso até que houve uma compensação, emergiu um cara que eu admiro um bocado e que me faz pensar em seu partido com mais simpatia, Jean Wyllys, até agora irrepreensível em sua atuação. Mas ele e alguns poucos outros são uma ilha libertária em um mar de intolerância.

Ao contrário do senador Lindberg, o ateu ungido. Pre candidato ao governo do Rio de Janeiro pela mesma macabra coligação federal, o ex cara pintada aparece com a cara mais deslavada do mundo junto com o ícone do fundamentalismo, raivoso defensor de inúmeros retrocessos sociais com dois claros objetivos: riqueza e poder. A primeira eles já conquistaram através da melhor forma de pagamento ou  da venda de óleos de Jesus e sandálias ungidas, dentre uma miríade de produtos. Lembro de Persépolis e tremo de medo do Brasil virar um Irã às avessas.

Enfim, viver é melhor que sonhar e ainda acredito que o amor seja uma coisa boa. Ainda consigo sentir no vento o cheiro da nova estação, mas ela parece um pouco mais distante quando vemos bastiões da liberdade se deixando corromper pelo sistema.

É, nossos ídolos não são mais os mesmos e as aparências enganam, sim.

Beto Volpe

terça-feira, 15 de outubro de 2013

Nota oficial da RNP+BR sobre o V Encontro Nacional

Pessoal, compartilho com vocês nota oficial da Rede sobre o V Encontro Nacional da Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV/AIDS, a RNP+BR.
Beto Volpe


Embates políticos e eleição do novo Colegiado encerram V Encontro da RNP+ Brasil

A Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV e AIDS (RNP+ Brasil) elegeu na plenária final de seu V Encontro Nacional a nova composição de seu colegiado nacional e Secretaria Nacional. O encontro foi realizado entre os dias 26 e 28 de setembro na cidade de Campo Grande, capital do Estado de Mato Grosso do Sul. Cerca de 200 pessoas vivendo com HIV e AIDS (PVHA) de todo o país, além de Angola e do Paraguai, participaram do evento.

O colegiado nacional da RNP+ Brasil é composto pela Secretaria Nacional, pelas representações nacionais e internacionais, além das representações regionais, eleitas nos respectivos encontros regionais e referendadas durante o V Encontro Nacional da RNP+ Brasil (veja lista completa das representações abaixo).

A RNP+ Brasil acatou proposta aprovada no Encontro Regional Sudeste, que redefiniu a Secretaria Nacional. Segundo a proposta referendada no Encontro Nacional, a Secretaria Nacional agora é composta por três integrantes, que ficarão responsáveis por importantes funções na RNP+ Brasil.

A partir de agora, a Secretaria Nacional da Rede terá uma ação Executiva, compreendendo a articulação política interna e externa, além de toda a parte administrativa. Em outra ponta, uma ação de Educação e Incidência Política, que será responsável por toda a capacitação, além de garantir o ordenamento político da rede. Para assessorar a Secretaria Nacional foi criada a Secretaria de Informação e Comunicação, que será responsável pela administração da página da RNP+ Brasil na internet, além de reunir dados para o geomapeamento da Rede.

Para cumprir a decisão da plenária, o colegiado nacional empossou Elifrank Moris, do Mato Grosso do Sul, na Secretaria Nacional Executiva. Para a Secretaria Nacional de Educação e Incidência Política foi empossado Moysés Toniolo, da Bahia. Para a Secretaria Nacional de Informação e Comunicação foi empossado Paulo Giacomini, de São Paulo.

Atendimento às PVHA na Atenção Básica e a participação de ativistas vivendo com HIV e AIDS na construção de novas estratégias para a Política Nacional de AIDS foram temas da Roda de Conversa com o diretor do Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais, Dr. Fabio Mesquita

Na manhã de 28 de setembro, o diretor do Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais do Ministério da Saúde, Dr. Fabio Mesquita, foi recebido pela plenária do V Encontro Nacional da RNP+ Brasil para uma roda de conversa. O objetivo do encontro com Mesquita foi ouvir do diretor do Departamento suas estratégias para conter a disseminação do HIV, bem como discutir a atual situação da assistência às PVHA no país. Porém, a grande preocupação do(a)s participantes do encontro era saber por que as PVHA devem ser tratadas pela Atenção Básica, nas Unidades Básicas de Saúde (UBS).

Entre outras questões, Mesquita foi indagado como será o tratamento das PVHA nas UBS, uma vez que é de competência da Atenção Básica a abordagem sindrômica das doenças sexualmente transmissíveis (DST), que não é executada na maioria dos casos. E, diante do novo consenso brasileiro para tratamento das PVHA com a terapia antirretroviral, quais seriam os critérios de permanência ou de transferência do tratamento para os Serviços de Atenção Especializada (SAE). O diretor do Departamento também foi questionado como se dará o vínculo com os novos pacientes, uma vez que a criação de vínculo entre médico e paciente é crucial para a adesão ao acompanhamento médico e à terapia antirretroviral de alta potência. Ainda, como serão absorvidas pela Atenção Básica as cerca de 40 mil PVHA que anualmente chegam aos SAE todos os anos no Brasil e qual o paradeiro dos profissionais de saúde capacitados pelo Ministério para realizar cirurgias contra a lipodistrofia.

Diante das respostas do diretor do Departamento do Ministério da Saúde, alguns ânimos se alteraram e houve um acirramento no debate. Segundo Elifrank Moris, Secretário Nacional Executivo da RNP+ Brasil, “algumas pessoas trazem, além da emergência da luta pela própria vida, questões emocionais envolvidas com o viver com o HIV. Isso deve ser considerado para que não levemos as discussões para o campo pessoal e possamos permanecer no campo da discussão política. E a política que nos interessa é como se dará a atenção às PVHA em todo o Brasil. Isso para nós é fundamental. É uma questão que afeta a vida de cada uma das mais de 600 mil PVHA no país”, considera o novo Secretário Nacional Executivo da RNP+ Brasil.

Apesar de ter renovado os nomes de suas representações nacionais na Comissão Nacional de DST e AIDS (CNAIDS) e na Comissão de Articulação com os Movimentos Sociais (CAMS), a RNP+ Brasil permanecerá fiel às deliberações da Articulação Nacional de luta contra a AIDS (ANAIDS) e não retornará a estes espaços, como também não participará dos Fóruns Regionais organizados pelo Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais enquanto o movimento social de luta contra a AIDS não for recebido em audiência pelo Ministro da Saúde, como proposto pela RNP+ Brasil em reunião, em 28 de agosto, com o Secretário de Vigilância em Saúde, Jarbas Barbosa, que acatou a proposta.

Até o próximo dia 25 de outubro a RNP+ Brasil irá divulgar Documento Político que norteará suas ações nos próximos dois anos, ou até o VI Encontro Nacional. Confira abaixo as representações RNP+ Brasil até 2015:

Secretaria Nacional
Executiva: Elifrank Moris (MS)
Educação e Incidência: Moysés Toniolo (BA)
Informação e Comunicação: Paulo Giacomini (SP)

Representações Nacionais
CNAIDSTitular: José Hélio Costalunga (RS)
Suplente: Maria Emília Gomes Ferreira (AM)
CAMSTitular: Simoni Bittencourt (MS)
Suplente: Antonio Alves Ferreira (CE)
Comissão de Acompanhamento de Políticas Públicas em DST, Aids, Tuberculose e Hepatites Virais do Conselho Nacional de Saúde (CAPDA): Jair Brandão de Moura Filho
Grupo Temático Ampliado do UNAIDS no Brasil (GT UNAIDS): Mara Moreira (RJ)

Comitê Comunitário de Vacinas: Jorge Beloqui (SP)

Representações Internacionais
Redla+ Rede Latinoamericana de Pessoas Vivendo com VIH/SIDA: Alister Rafael (RJ)
Rede +PLP: Efraim Lisboa (AM)

Representações Regionais
Centro-oeste:   Titular: Rosildo Silva (DF)
                           Suplente: Simoni Bittencourt (MS)
Nordeste:           Titular: Marcos Fontes (RN)
                            Suplente: Jerônimo Duarte (PE)
Norte:                  Titular: Renê Monteiro (RR)
                             Suplente: Efraim Lisboa (AM)
Sudeste:            Titular: Maria Fátima dos Santos (SP)
                             Suplente: Simone Guedes (ES)
Sul:                     Titular: Jaime Berdias (RS)
                            Suplente: Marcelo Pacheco de Freitas (SC)

domingo, 13 de outubro de 2013

Gente hipócrita - por Bárbara Gancia

Nossos ídolos não são mais os mesmos e as aparências enganam, sim.
Beto Volpe


Tudo, tudo, tudo vai dar pé; tudo, tudo, tudo vai dar pé. Ah, vai sim! Sem dúvida. Sendo que as mesmíssimas pessoas que ontem arriscaram o pescoço pela liberdade ou estiveram dispostas a pagar com a vida para garantir a democracia são aquelas que hoje estão sentadas nos banco dos réus acusadas de crimes de corrupção ou, veja só, exigindo censura prévia contra a livre expressão.

Do jeito que vai, entre uma coisa e outra, liberdades conquistadas a duras penas podem morrer afogadas. Ano que vem tem eleição. E, por coincidência, um texto que poderia passar para o Senado depois de ter sido aprovado em caráter terminativo na Câmara "emperra" na Casa graças a um recurso. Cuma? O que tem eleição a ver com o projeto de lei que permite publicação de livros biográficos sem autorização do biografado ou da família?
Ob-servando hipócritas disfarçados rondando ao redor, sabe-se lá o que houve, a manobra foi misteriosa; fato está que a lei teve de ficar na Câmara e, agora, nós vemos surgir, como uma nuvem negra que essa gente não sabe onde vai, o tal do movimento encabeçado pelo messiânico Roberto Carlos, Procure Saber, associação que visa proteger a honra e a privacidade de biografados tapuias.

Gostaria de tranquilizar meus ídolos Roberto, Caetano, Gil, Erasmo (beijo, Tremendão, te amo!) etc: calma, pessoal! De minha parte, quero deixar claro que não tenho o menor interesse em ler a história de nenhum de vocês.

Pra que perder tempo? Já sei que Caetano nasceu em Santo Amaro (BA), é filho de dona Canô, que sua irmã é uma precursora meio confusa de Daniela Mercury, que ele começou a namorar a ex-mulher quando ela era "de menor", ué? Por acaso, Cae fez escondido sem que algum ser humano do planeta tomasse conhecimento? Que privacidade é essa que eles tanto estão querendo resguardar? Coisa mais provinciana!

Eu lá estou interessada em saber o que o Milton fez com seus amiguinhos do clube da esquina ou na casinha de sapê? A mim basta aquela voz gloriosa ao lado do sax de Wayne Shorter, não estou nem aí com a ressaca moral de quem fez e agora não segura a onda. Ou será que há o pretexto de valorizar o peixe para depois vendê-lo mais caro?

Há um fenômeno interessante descrito nas "Aventuras de Tom Sawyer", de Mark Twain. A tia de Tom ordena que o menino pinte a cerca da casa. Preguiçoso, Tom tenta achar um jeito para escapar. E encontra um meio de passar o mico para frente, sorrindo e cantando e pintando com entusiasmo a cada amigo seu que passa pela calçada. O dia termina com o menino sentado na grama enquanto toda a criançada da vizinhança termina o serviço por ele.

A esta altura, o oportunismo e a ganância de Paula Lavigne e Flora Gil são conhecidos até do papa. Peguei pesado? Refraseio, então: o senso de oportunidade para negócios da ex-mulher e da mulher de Caetano e de Gil é muy admirado. Sobretudo por Caetano e Gil.
Um fala o que lhe dá na veneta, Dumbledore desmesurado, cujo prestígio político, poderia -como não?- dar ou tirar votos do candidato Freixo. O outro, ex-ministro, ou seja, também animal político, aninhou-se na verborreia de hippie sequelado que o país aprendeu a tratar com condescendência.

E as madames negociando: sr. Rouanet entra na sala, sr. Rouanet sai. Sr. Rouanet toma um táxi ou vai ao banheiro e elas firmes. Ninguém dá um pio, afinal estamos falando de mitos. E elas são folclóricas. Mas tem limite: são os direitos sagrados expressos na Constituição. Mexeu nisso, aquele abraço.

Bárbara Gancia, mito vivo do jornalismo tapuia e torcedora do Santos FC, detesta se envolver em polêmica. E já chegou na idade de ter de recusar alimentos contendo gordura animal. É colunista do caderno "Cotidiano" e da revista "sãopaulo".

sexta-feira, 11 de outubro de 2013

ADEUS GABRIELA LEITE

Replico texto de Liandro Lindner sobre a passagem de Gabriela Leite, ativista pelos direitos humanos no Brasil.
Beto Volpe

ADEUS GABRIELA LEITE

Choro hoje a partida de uma amiga, uma lutadora, uma mulher com quem muito aprendi, muito bebi, articulei, ri e dividi alegrias e bons e maus momentos.

GABRIELA LEITE não resistiu a um câncer e faleceu hoje, aos 62 anos. Ativista dos Direitos Humanos, líder das prostitutas do Brasil, escritora, política, uma mulher de fibra e energia que viveu intensamente seus dias e soube lutar por seus iguais.

Dos diversos momentos em que dividimos mesa e idéias, bebendo e conversando, em várias partes do mundo, fui aprendendo a admirá-la pela história de vida e pela capacidade de se reinventar a cada provação, superando obstáculos e lutando sempre mesmo em meio as dificuldades de toda a ordem. 

Sua biografia no livro " Filha, Mãe, Avó e Puta" é um relato de superação e determinação em seguir as vontades construindo novas realidades. A fundação da ONG Davida, da grife "Daspu", a peça de seu livro estreada por Alexia Dechamps, foram marcos de sua capacidade criativa e contestatória que rompeu barreiras e fez a diferença. Uma voz de transgressão num mundo conformista.

Fará falta !
Descanse em paz !Choro hoje a partida de uma amiga, uma lutadora, uma mulher com quem muito aprendi, muito bebi, articulei, ri e dividi alegrias e bons e maus momentos.

GABRIELA LEITE não resistiu a um câncer e faleceu hoje, aos 62 anos. Ativista dos Direitos Humanos, líder das prostitutas do Brasil, escritora, política, uma mulher de fibra e energia que viveu intensamente seus dias e soube lutar por seus iguais.

Dos diversos momentos em que dividimos mesa e idéias, bebendo e conversando, em várias partes do mundo, fui aprendendo a admirá-la pela história de vida e pela capacidade de se reinventar a cada provação, superando obstáculos e lutando sempre mesmo em meio as dificuldades de toda a ordem. 

Sua biografia no livro " Filha, Mãe, Avó e Puta" é um relato de superação e determinação em seguir as vontades construindo novas realidades. A fundação da ONG Davida, da grife "Daspu", a peça de seu livro estreada por Alexia Dechamps, foram marcos de sua capacidade criativa e contestatória que rompeu barreiras e fez a diferença. Uma voz de transgressão num mundo conformista.

Fará falta !
Descanse em paz !
 

Liandro Lindner

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

OS ESTUPROS FANTASMA DA BOLÍVIA

Pessoal, é um texto longo, mas é só fechar os olhos por um instante e tentar visualizar o cotidiano dessa gente e os acontecimentos relatados que se chega ao final facinho. É um verdadeiro thriller religioso.
Beto Volpe

Todas as fotos por Noah Friedman-Rudovsky. Noah Friedman-Rudovsky também contribuiu com informações para este artigo.

OS CRIMINOSOS FORAM PRESOS, MAS OS CRIMES CONTINUAM

By Jean Friedman-Rudovsky



Durante algum tempo, os residentes da colônia de Manitoba acharam que demônios estavam estuprando as mulheres da cidade. Não havia outra explicação. Como explicar o fato de uma mulher acordar com manchas de sangue e sêmen nos lençóis e nenhuma lembrança da noite anterior? Como explicar o caso de outra residente, que foi dormir vestida e acordou nua, coberta de impressões digitais sujas por todo o corpo? Como explicar que, depois de ter um pesadelo que consistia num homem a possuindo à força num campo, outra das colonas acordara na manhã seguinte com grama em seus cabelos?

O mistério de Sara Guenter era a corda. Às vezes, ela acordava em sua cama com pequenos pedaços de corda atados firmemente a seus pulsos e quadris, a pele embaixo deles azulada e dolorida. No começo do ano, visitei Sara em sua casa na colônia Manitoba, na Bolívia. Era uma construção simples de concreto pintado para se assemelhar a tijolos. Os menonitas são similares aos amish em sua rejeição à modernidade e tecnologia, e a colônia Manitoba, como todas as comunidade menonitas ultraconservadoras, é uma tentativa coletiva de se afastar o máximo possível do mundo dos não crentes. Uma leve brisa de soja e sorgo vinha dos campos próximos enquanto Sara me contava como, além das estranhas cordas, nas manhãs depois dos estupros ela também acordava com lençóis manchados, dores de cabeça arrasadoras e uma letargia paralisante.
Suas duas filhas, de 17 e 18 anos, estavam agachadas na parede atrás dela e me encaravam com seus ferozes olhares azuis. O demônio tinha penetrado na casa, disse Sara. Cinco anos atrás, suas filhas também começaram a acordar com lençóis sujos e reclamar de dores “lá embaixo”.
A família tentou trancar as portas. Em algumas noites, Sara fez de tudo para ficar acordada. Em outras ocasiões, um trabalhador boliviano da cidade vizinha de Santa Cruz chegou a montar guarda durante a noite. Mas, inevitavelmente, quando sua casa de um andar — afastada e isolada da estrada de terra — não estava sendo vigiada, os estupros aconteciam novamente (Manitoba não é ligada à rede de energia elétrica, então, a comunidade fica submersa na escuridão completa durante a noite). “Aconteceu tantas vezes que eu perdi a conta”, Sara me disse em seu baixo-alemão nativo, a única língua que ela fala, como a maioria das mulheres da comunidade.

Crianças menonitas frequentam a escola da colônia Manitoba, Bolívia.


No início, a família não tinha a menor ideia de que não era a única a ser atacada, então, eles não disseram nada a ninguém. Mas Sara resolveu contar tudo para suas irmãs. Quando os rumores se espalharam “ninguém acreditou nela”, disse Peter Fehr, o vizinho de Sara na época dos incidentes. “Achamos que ela estava inventando isso para esconder um caso.” Os pedidos de ajuda da família ao conselho de pastores da igreja, o grupo de homens que governa a colônia de 2.500 membros, foram infrutíferos — mesmo com as histórias se multiplicando. Por toda a comunidade, as mulheres começaram a acordar com os mesmo sinais matinais: pijamas rasgados, sangue e sêmen nas camas, dores de cabeça e estupor. Algumas mulheres lembravam breves momentos de terror: o instante em que acordavam com um homem ou alguns homens em cima delas, sem ter forças para gritar ou lutar. Depois, tudo caia na escuridão.
Lá, alguns chamaram isso de “imaginação selvagem feminina”. Outros disseram que era uma praga de Deus. “Só sabíamos que alguma coisa estranha estava acontecendo durante a noite”, disse Abraham Wall Enns, o líder civil da colônia Manitoba na época. “Mas não sabíamos quem estava fazendo isso, então, como podíamos impedir?”
Ninguém sabia o que fazer, então ninguém fez nada. Depois de um tempo, Sara aceitou que aquelas noites de terror eram fatos horríveis que faziam parte de sua vida. Nas manhãs seguintes, a família se levantava, apesar das dores de cabeça, trocava os lençóis e seguia com seu dia a dia.
Então, numa noite de junho de 2009, dois homens foram pegos tentando entrar numa casa da vizinhança. Os dois deduraram os amigos e, como um castelo de cartas, um grupo de nove homens de Manitoba, com idades entre 19 e 43 anos, finalmente confessaram que vinham estuprando as famílias da colônia desde 2005. Para incapacitar as vítimas e qualquer possível testemunha, os homens usavam um spray criado por um veterinário das redondezas, adaptado de um remédio usado para anestesiar vacas. De acordo com as confissões iniciais (que depois eles tentariam negar), os estupradores admitiram que — às vezes em grupo, às vezes sozinhos — se escondiam do lado de fora das janelas dos quartos à noite, borrifavam a substância através dos vãos das janelas para drogar famílias inteiras, e depois se esgueiravam para dentro.
Mas foi só durante o julgamento deles, que aconteceu quase dois anos mais tarde, em 2011, que o verdadeiro alcance de seus crimes veio à tona. As transcrições são um roteiro de filme de terror: as vítimas tinham idades entre 3 e 65 anos (a mais nova tinha um hímen rompido, supostamente por penetração com o dedo). As meninas e mulheres eram casadas, solteiras, residentes, visitantes e doentes mentais. Apesar de isso nunca ter sido discutido e não fazer parte do caso jurídico, residentes me contaram em particular que homens e meninos também foram estuprados.
Em agosto de 2011, o veterinário que fornecia o spray anestésico foi sentenciado a 12 anos de prisão e os estupradores receberam penas de 25 anos (cinco anos a menos do que a penalidade máxima boliviana). Oficialmente, foram 130 vítimas — pelo menos uma pessoa em mais da metade das casas da colônia Manitoba. Mas nem todos os estupros foram incluídos no caso legal e acredita-se que o número de vítimas seja muito, muito maior.

Crianças menonitas jogam futebol na colônia Manitoba, Bolívia.


Após os crimes, as mulheres não receberam nenhum tipo de terapia ou aconselhamento. Houve poucas tentativas de investigar a fundo e ir além das confissões. E, nos anos seguintes à prisão dos homens, nunca houve uma discussão na colônia sobre os eventos. Em vez disso, uma lei do silêncio se estabeleceu depois dos vereditos.
“Isso ficou no passado”, disse-me Wall, o líder civil, durante minha viagem mais recente para lá. “Preferimos esquecer do que ter isso para sempre em nossas mentes.” Fora a interação com um ou outro jornalista ocasional, ninguém mais fala sobre o assunto.
No entanto, durante os nove meses de investigação, incluindo uma estada de 11 dias em Manitoba, descobri que os crimes estão longe de acabar. Além do persistente trauma psicológico, há evidências de abusos sexuais generalizados e contínuos, incluindo incesto. Há também evidências de que — apesar de os criminosos iniciais estarem na cadeia — os estupros com o uso de drogas continuam.
Parece que os demônios continuam por ali.

Oito homens menonitas cumprem pena pelo estupro de mais de 130 mulheres na colônia Manitoba. Um dos supostos estupradores fugiu e hoje vive no Paraguai.


À primeira vista, a vida dos residentes de Manitoba parece uma existência idílica invejável paranew agers: as famílias vivem da terra; painéis solares iluminam as casas e moinhos alimentam poços de água potável. Quando um membro de uma família morre, os outros residentes se dividem em turnos cozinhando para os enlutados. As famílias mais ricas subsidiam a manutenção da escola e os salários dos professores. Os dias começam com pão caseiro, marmelada e leite ainda morno direto do estábulo. Ao anoitecer, as crianças brincam de pega-pega, enquanto os pais se sentam em cadeiras de balanço e assistem ao pôr do sol.

Mas nem todos os menonitas vivem em mundos protegidos. São 1,7 milhões deles em 83 países diferentes. De comunidade para comunidade, a relação deles com o mundo moderno pode variar consideravelmente. Alguns evitam totalmente a modernidade; outros vivem em mundo insulares, mas permitem carros, televisores, celulares e vestimentas variadas. Muitos são virtualmente indistinguíveis do resto da sociedade.
A religião se formou num desdobramento da Reforma Protestante na década de 1520 na Europa, liderado por um padre católico chamado Menno Simons. Os líderes da igreja não apoiavam as visões de Simons quanto ao batismo de adultos, pacifismo e sua crença de que só se chegava ao paraíso levando uma vida simples. Ameaçados pela nova doutrina, as igrejas Protestante e Católica começaram a perseguir seus seguidores pela Europa Central e Ocidental. A maioria dos menonitas — como os seguidores de Simons ficariam conhecidos — se recusava a lutar por causa de seu voto de não violência, então, fugiu para a Rússia, onde recebeu assentamentos para viver sem ser perturbada pelo resto da sociedade.
No entanto, por volta de 1870, a perseguição chegou a Rússia, então, o grupo seguinte procurou refúgio no Canadá, sendo bem recebido pelo governo, que precisava de colonos pioneiros. Na chegada, muitos menonitas começaram a adotar o modo de vestir da época, a língua e outros aspectos da vida contemporânea. Um pequeno grupo, no entanto, continuou a acreditar que só poderia entrar no paraíso se vivesse da mesma maneira que seus antepassados, e ficou horrorizado ao ver seus colegas seguidores serem tão facilmente seduzidos pelo novo mundo. Esse grupo, conhecido como “Colonos Antigos”, abandonou o Canadá na década de 1920, em parte porque o governo exigia que as escolas dessem aulas em inglês e sugeriu a padronização do currículo para todo o país (até hoje, os colonos antigos ministram suas aulas em baixo-alemão, totalmente baseadas na Bíblia. A educação formal termina aos 13 anos para os meninos e aos 12 para as meninas).
Os colonos antigos migraram para o Paraguai e o México, onde havia amplas terras cultiváveis, pouca tecnologia e, mais importante, a promessa dos respectivos governos de deixá-los viver de seu próprio modo. Mas nos anos 1960, quando o México introduziu uma reforma educacional que limitava a autonomia dos menonitas, outra migração teve início. Colônias Antigas brotaram nas partes mais remotas das Américas, com uma grande concentração na Bolívia e em Belize.

Meninos e meninas menonitas passeiam na colônia Manitoba, Bolívia.


Hoje, são cerca de 350 mil colonos antigos no mundo e a Bolívia é o lar de mais de 60 mil deles. A colônia Manitoba, que se formou em 1991, parece uma relíquia do mundo antigo no meio do mundo atual: uma ilha branca de olhos azuis de ordem, no meio do mar de caos dos países mais empobrecidos e indígenas da América do Sul. A colônia prospera economicamente graças à ética de trabalho de seus membros, grandes campos férteis e fabricação coletiva de leite.
Manitoba emergiu como um verdadeiro paraíso na Terra para os seguidores da Colônia Antiga. Outras colônias na Bolívia afrouxaram seus códigos, mas Manitoba rejeita fervorosamente carros e seus tratores têm rodas de aço, já que possuir qualquer veículo mecanizado com pneus de borracha é visto como pecado capital, pois permite contato fácil com o mundo externo. Os homens são proibidos de deixar crescer pelos faciais e usam sempre macacões jeans, exceto na igreja, onde usam calça social. Meninas e mulheres usam os cabelos trançados de maneira intrincada e idêntica, e a pressão é grande para achar um vestido com o comprimento das mangas variando apenas alguns milímetros do projeto predeterminado. Para os residentes de Manitoba, essas não são regras arbitrárias: elas formam o único caminho para a salvação e os colonos acreditam que suas almas dependem da obediência a elas.
Como os antigos colonos desejavam, Manitoba foi deixada entregue à sua própria sorte. Exceto em caso de homicídio, o governo boliviano não exige que os líderes da comunidade reportem qualquer outro crime. A polícia não tem qualquer jurisdição dentro da comunidade, nem autoridades estaduais ou municipais. Os colonos mantêm a lei e a ordem por meio de um governo próprio de nove pastores e um bispo dirigente, todos eleitos para mandatos vitalícios. Fora a obrigatoriedade de garantir que todos os residentes tenham documento de identidade do estado, Manitoba funciona quase como uma nação soberana.

Abraham Wall Enns (centro) com sua família. Abraham era o líder civil de Manitoba na época dos estupros.


Cobri o julgamento do caso dos estupros de Manitoba em 2011 para a Time. Assombrada desde minha primeira visita à colônia, eu queria saber como as vítimas estavam vivendo agora. Também fiquei imaginando se esses crimes horríveis eram uma anomalia ou se expunham feridas mais profundas na comunidade. Seria possível que o mundo insular das Colônias Antigas, em vez de promover a coexistência pacífica desvinculada das armadilhas da sociedade moderna, estaria fomentando sua própria morte? Eu precisava voltar e descobrir.

Cheguei tarde, numa noite enluarada de uma sexta-feira do mês de janeiro. Fui recebida com sorrisos amistosos por Abraham e Margarita Wall Enns, que me esperavam na varanda de sua pequena casa, separada da estrada por um caminho cercado de árvores bem cuidadas. Embora notoriamente reclusos, os antigos colonos são gentis com estrangeiros que não ameacem seu modo de vida, e foi assim que cheguei até ali. Conheci Abraham, o sardento líder de 1,80m de altura da comunidade, em 2011, e ele disse que eu podia ficar com ele e sua família se algum dia voltasse a Manitoba. Agora, eu estava ali, esperando ver a vida na Colônia Antiga de perto enquanto entrevistava os residentes sobre os estupros e o que aconteceu depois.
Dentro da casa impecável, Margarita me mostrou seu quarto ao lado de outros dois onde seus nove filhos já estavam dormindo. “Instalamos isso agora, por segurança”, ela disse, segurando a porta de ferro de três polegadas no final da escada. Alguns roubos tinham acontecido recentemente (atribuídos aos bolivianos). “Durma bem”, ela me disse, antes de aparafusar a porta que separava a mim e sua família do resto do mundo.
Na manhã seguinte, levantei antes do amanhecer com o resto da casa. Em qualquer dia da semana, as duas filhas mais velhas — Liz, 22 anos, e Gertrude, 18 — passam a maior parte do tempo lavando a louça e as roupas, preparando as refeições, ordenhando as vacas e mantendo a casa impecavelmente limpa. Dei o meu melhor e tentei não estragar tudo enquanto ajudava com as tarefas. Lá pela hora do almoço, eu já estava exausta.
Trabalhos domésticos estão fora dos domínios de Abraham e seu seis filhos homens; é possível que eles passem a vida inteira sem nunca limpar seus próprios pratos. Eles trabalham no campo, mas como estávamos no período da entressafra, os mais velhos montavam equipamentos de trator que o pai tinha importado da China, enquanto os mais jovens subiam pelos postes do celeiro e brincavam com periquitos de estimação. Abraham permite que os meninos chutem uma bola de futebol pela propriedade e pratiquem espanhol lendo o jornal de Santa Cruz entregue ocasionalmente; no entanto, qualquer outra atividade organizada, seja esporte competitivo, dança ou música, podem comprometer sua salvação eterna e são estritamente proibidos.
Os Walls me contaram que, felizmente, ninguém de sua família foi vítima dos estupradores, mas como todo mundo na comunidade, eles ficaram sabendo tudo sobre o caso. Um dia, Liz concordou em me acompanhar nas entrevistas às vítimas de estupro da comunidade. Uma jovem curiosa e hábil, que aprendeu espanhol com a cozinheira boliviana da família, ela ficou feliz em ter uma desculpa para sair de casa e socializar.
Partimos numa pequena carroça puxada por um cavalo pelas estradas de terra. Durante o caminho, Liz me contou suas memórias sobre a época do escândalo. Até onde ela sabia, os estupradores nunca entraram em sua casa. Quando perguntei se ela tinha ficado com medo, ela disse que não. “Eu não acreditava”, ela me disse. “Então, só fiquei com medo depois que eles confessaram. Aí isso virou realidade.”
Quando perguntei a Liz se ela achava que os estupros podiam ter sido interrompidos antes, se essas mulheres tivessem sido levadas a sério, ela só franziu a testa. A colônia não deu aos estupradores a liberdade de atacar por quatro anos, em parte porque as pessoas culparam a “imaginação selvagem feminina”? Ela não respondeu, mas parecia perdida em pensamentos enquanto nos guiava pela estrada de terra.
Entramos por um pátio de pedrinhas numa casa grande e fui fazer a entrevista enquanto Liz esperava do lado de fora junto à carroça. Numa sala de estar escura, falei com Helena Martens, uma mulher de meia-idade e mãe de 11 filhos, e seu marido. Ela se sentou no sofá e deixou as cortinas da janela fechadas enquanto falávamos sobre o que aconteceu com ela há quase cinco anos.
Em algum momento de 2008, Helena me contou, ela ouviu um chiado enquanto arrumava a cama. Ela sentiu um cheiro estranho também, mas depois que o marido se certificou de que o registro de gás da cozinha não estava vazando, eles foram dormir. Ela lembra vividamente de acordar no meio da noite com “um homem em cima de mim e outro no quarto, mas não consegui levantar meus braços para me defender”. Ela logo voltou a dormir profundamente. Na manhã seguinte, sua cabeça latejava e os lençóis estavam sujos.
Os estupradores a atacaram muitas vezes. Helena sofreu de várias complicações médicas durante esse período, inclusive uma operação relacionada ao útero (sexo e saúde reprodutiva são assuntos tão tabus para os menonitas conservadores que muitas mulheres nunca chegam a aprender os nomes corretos de suas partes do corpo, o que inibiu certas descrições do que acontecia durante os ataques e suas consequências). Uma manhã, ela acordou com tanta dor que “achei que ia morrer”, ela me disse.
Helena, como as outras vítimas em Manitoba, nunca teve a chance de falar com um terapeuta profissional, mesmo dizendo que iria se tivesse a oportunidade. “Por que elas precisam de aconselhamento se nem estavam acordadas quando tudo aconteceu?”, disse o bispo Johan Neurdorf, a maior autoridade de Manitoba, a um visitante em 2009, depois que os estupradores foram presos.
Outras vítimas que entrevistei — tanto as que acordaram durante os estupros como aquelas que não tinham nenhuma memória da noite — disseram que também gostariam de falar com um terapeuta sobre suas experiências, mas que isso também seria quase impossível, já que não há nenhum especialista na recuperação de vítimas de ataque sexual que fale baixo-alemão na Bolívia.
Todas as mulheres com quem falei não sabiam que a comunidade menonita mundial, particularmente grupos mais progressistas do Canadá e Estados Unidos, se ofereceram para enviar conselheiros falantes de baixo-alemão para Manitoba. Claro, isso significa que elas não tinham a menor ideia que foram os homens da comunidade que rejeitaram essas ofertas. Depois de séculos de tensão com seus irmãos menos tradicionais, a liderança da Colônia Antiga bloqueia regularmente qualquer tentativa de contato direto entre seus membros e esses grupos. Eles viram a oferta de apoio psicológico como uma outra tentativa velada de encorajar o abandono do velho caminho.

Um líder da comunidade na colônia Manitoba.


É provável que a recusa da liderança tenha outros motivos, como não querer que o trauma emocional dessas mulheres agitasse as coisas ou chamasse muita atenção para a comunidade. Eu já sabia que o papel das mulheres na Colônia Antiga era obedecer e se submeter aos comandos de seus maridos. Um pastor local me disse que as meninas ficam um ano a menos na escola porque não precisam aprender matemática ou contabilidade, o que é ensinado durante o ano de educação adicional para os meninos. As mulheres também não podem ser ministras nem votar para elegê-los. Elas também não podem se representar legalmente, como o caso dos estupros deixou dolorosamente aparente. Os queixosos do julgamento foram cinco homens — um grupo selecionado de maridos ou pais das vítimas — e não as próprias mulheres.
Mas ainda que estivesse preparada para aceitar os papéis em preto e branco dos gêneros em Manitoba, minha visita também revelou tons de cinza. Vi homens e mulheres compartilhando as tomadas de decisão nas casas. Nas reuniões de família estendidas nos domingos, as cozinhas ocupadas apenas pelas mulheres se enchiam de grandes personalidades e risadas altas, enquanto os homens se sentavam do lado de fora solenemente, discutindo a seca. Passei longas tardes com garotas confiantes como Liz e suas amigas, que, da mesma maneira que suas colegas no mundo todo, se encontram quando precisam falar sobre coisas irritantes que os pais fazem ou atualizar as novidades amorosas da semana anterior.
Tratando-se dos estupros, esses fortes laços femininos — e o espaço seguro fornecido por uma rotina tão segregada — gerou conforto. As vítimas disseram que contaram com o apoio de suas irmãs e primas, especialmente enquanto tentavam se ajustar de volta à vida normal depois do julgamento.
As menores de 18 anos nomeadas do processo foram levadas para fazer uma avaliação psicológica, como exigido pela lei boliviana, e os documentos do tribunal apontavam que cada uma delas mostrava sinais de estresse pós-traumático e que um longo aconselhamento era recomendado — mas nenhuma delas recebeu nenhuma forma de terapia desde a avaliação. Diferente das mulheres adultas, que ao menos acharam algum consolo em suas irmãs e primas, muitas das garotas mais jovens não tiveram sequer a chance de falar com alguém sobre suas experiências depois da avaliação exigida pelo governo.
Em sua sala de estar, Helena me contou que sua filha também foi estuprada, mas que as duas nunca conversaram sobre isso, e que a garota, agora com 18 anos, não sabe que sua mãe também é uma sobrevivente de estupro. Nas Colônias Antigas, o estupro traz vergonha sobre as vítimas; as sobreviventes ficam marcadas. Por toda a comunidade, outros pais de vítimas mais jovens também me disseram que foi melhor deixar tudo em silêncio.
“Ela era muito jovem” para falar sobre isso, disse-me o pai de outra vítima, que tinha 11 quando foi estuprada. Ele e sua esposa nunca explicaram para a garota por que ela acordou com dor, uma certa manhã, sangrando tanto que teve que ser levada para o hospital. Ela passou por visitas médicas posteriores, com enfermeiras que não falavam sua língua e nunca soube que foi estuprada. “Foi melhor que ela não soubesse”, disse o pai.
Todas as vítimas que entrevistei disseram que os estupros passam por suas mentes praticamente todos os dias. Além de se abrir com amigas, elas têm lidado com a dor por meio da fé. Helena, por exemplo — apesar de seus braços fortemente cruzados e o balanço aflitivo do corpo que pareciam desmenti-la — me disse que encontrou a paz e insistiu: “Perdoei os homens que me estupraram”.
E não foi só ela. Ouvi a mesma coisa de vítimas, pais, irmãs e irmãos. Alguns até disseram que se os estupradores condenados tivessem admitido seus crimes — como fizeram inicialmente — e pedido o perdão de Deus, a colônia teria pedido ao juiz para retirar as sentenças.
Fiquei perplexa. Como eles podiam aceitar unanimemente crimes tão flagrantes e premeditados?
Só quando falei com o pastor Juan Fehr, vestido como todos os pastores da comunidade, todo de preto e com botas pretas de cano alto, foi que entendi. “Deus escolheu Seu povo para provas de fogo”, ele disse. “Para chegar ao paraíso, você precisa perdoar aqueles que agiram mal com você.” O pastor disse que acreditava que a maioria das vítimas tinha perdoado por vontade própria. No entanto, se alguma das mulheres não quisesse perdoar, ele disse, ela receberia a vista do bispo Neurdorf, a mais alta autoridade de Manitoba, e “ele simplesmente explicaria que se ela não perdoasse, Deus não a perdoaria”.

Uma das vítimas mais jovens ouvida pela acusação tinha apenas 11 anos na época dos estupros. A maioria das vítimas não tiveram nenhum aconselhamento psicológico e, de acordo com especialistas, provavelmente sofrem de transtorno de estresse pós-traumático.


Os líderes de Manitoba também encorajaram os residentes a perdoar incestos — uma lição que Agnes Klasse aprendeu de forma dolorosa. Numa terça-feira abafada, a mãe de dois filhos me encontrou do lado de fora de sua casa de dois quartos, próxima a uma rodovia no leste da Bolívia, a aproximadamente 64 quilômetros de sua antiga casa em Manitoba. Agnes deixou a comunidade em 2009. Ela estava usando o cabelo preso num rabo de cavalo e suando num jeans e numa camiseta comuns.

Eu não estava ali para falar sobre os estupros, mas, uma vez dentro de sua casa, o assunto surgiu inevitavelmente. “Certa manhã, acordei com dor de cabeça e havia sujeira na cama”, ela disse, se referindo a quando morava em Manitoba, como alguém se lembrando de um item esquecido de uma lista de compras. Ela nunca pensou muito naquela manhã desde então, e não foi incluída no processo, ela não viu razão para continuar depois que os criminosos foram presos.
Mas eu tinha ido até lá falar com Agnes sobre outra parte dolorosa de seu passado — o incesto — cujas origens não ficaram muito claras. “Tudo meio que se mistura”, ela disse sobre suas memórias mais antigas da infância, que incluem ser acariciada por muitos de seus oito irmãos mais velhos. “Não sei dizer quando [o incesto] começou.”
Uma entre 15 filhos, crescendo na Colônia Antiga de Riva Palacios (sua família se mudou para Manitoba quando ela tinha oito anos), Agnes disse que os abusos aconteciam no celeiro, nos campos ou nos quartos compartilhados com os irmãos. Ela não percebeu que aquilo era impróprio até completar 10 anos, quando levou uma surra severa depois que seu pai a encontrou sendo acariciada por um irmão. “Minha mãe nunca conseguiu me dizer que eu estava sendo injustiçada ou que aquilo não era minha culpa”, ela relembra.
Depois disso, o abuso continuou, mas Agnes tinha medo demais para pedir ajuda. Aos 13 anos, um de seus irmãos tentou estuprá-la e Agnes contou a mãe. Ela não apanhou dessa vez e, por um tempo, sua mãe fez o melhor que pode para manter os dois separados. Mas o irmão finalmente a encontrou sozinha e a estuprou.
Os ataques dos irmãos se tornaram cada vez mais comuns, mas não havia para onde se voltar. Colônias Antigas não têm forças policiais. Os pastores lidam com irregularidades diretamente, mas, como os mais jovens não são tecnicamente membros da igreja até seu batismo (geralmente no começo dos 20 anos), o mau comportamento é tratado dentro de casa.
Procurar ajuda fora da colônia nunca passou pela cabeça de Agnes: desde seu primeiro dia na Terra, ela, como todas as crianças da Colônia Antiga, fora ensinada que o mundo exterior era dominado pelo mal. E mesmo se alguém consegue sair, não há como uma criança ou mulher contatar ou se comunicar com um mundo que não fala baixo-alemão.
“Aprendi a viver com aquilo”, disse Agnes pausadamente, desculpando-se pelas interrupções e pelas lágrimas. Era a primeira vez que ela contava toda sua história. Ela disse que o incesto parou quando outros garotos começaram a cortejá-la e ela arquivou isso em sua mente como uma coisa do passado.
Mas, então, ela se casou, mudou para sua própria casa em Manitoba e deu à luz duas meninas, mas os membros da família começaram a molestar as crianças durantes visitas. “Estava começando a acontecer com elas também”, ela disse, seus olhos seguindo as duas garotinhas loiras platinadas que passavam correndo em frente às janelas enquanto brincavam do lado de fora. Um dia, sua filha mais velha, que ainda não tinha completado 4 anos, disse a Agnes que o avô tinha pedido a ela para colocar suas mãos dentro da calça dele. Agnes disse que seu pai nunca molestou ela ou suas irmãs, mas que ele teria supostamente abusado das netas até que Agnes fugiu de Manitoba com as filhas (e supostamente ainda abusa de suas sobrinhas, que permanecem na colônia). Em outra ocasião, ela pegou o sobrinho acariciando sua filha mais nova. “Isso acontece o tempo todo”, ela disse. “Não só na minha família.”
Na verdade, há muito tempo existe uma discussão abafada, porém, acalorada, na comunidade menonita internacional sobre se as Colônias Antigas têm um problema de incesto desenfreado. Alguns defendem os antigos colonos, dizendo que abuso sexual acontece em toda parte e que ocorrências assim em lugares como Manitoba só prova que qualquer sociedade, não importa o quão correta seja, é suscetível a problemas sociais.
Mas outros, como Erna Friessen, uma menonita canadense que me apresentou a Agnes, insiste: “O alcance da violência sexual dentro das Colônias Antigas é enorme”. Erna e seu marido ajudaram a fundar a Casa Mariposa, um abrigo para mulheres e garotas abusadas das Colônias Antigas. Localizada nas proximidades da cidade de Pailon, no coração do território das Colônias Antigas da Bolívia, eles têm um influxo contínuo de missionários falantes de baixo-alemão prontos para ajudar, mas o número de mulheres que conseguem chegar até a casa é pequeno. Além dos desafios em conscientizar as mulheres sobre esse espaço e convencê-las de que o melhor a fazer é procurar ajuda, Erna me disse que “vir para a Casa Mariposa frequentemente significa deixar para sempre suas famílias e o único mundo que elas conhecem”.
Erna admite que é impossível calcular o número exato devido à natureza insular dessas comunidades, mas que ela tem certeza de que as taxas de abuso sexual são maiores nas Colônias Antigas do que nos Estados Unidos, por exemplo, onde uma em cada quatro mulheres será abusada sexualmente antes dos 18 anos. Erna passou sua vida toda entre esses grupos — ela nasceu numa colônia menonita no Paraguai, foi criada no Canadá e passou os últimos oito anos na Bolívia. De todas as mulheres das Colônias Antigas que ela conheceu em todos esses anos “a maioria foi vítima de abuso”, segundo ela. Ela considera as colônias “um solo fértil para o abuso sexual”, em parte porque a maioria das mulheres das Colônias Antigas cresce acreditando que deve aceitar isso. “O primeiro passo é fazê-las sempre reconhecer que foram injustiçadas. Isso aconteceu com elas, aconteceu com as mães delas e aconteceu com suas avós, então, elas sempre ouviram que devem simplesmente lidar com isso.”
Outros que trabalham com a questão do abuso nas Colônias Antigas também hesitam em apontar taxas de incidência, mas dizem que a maneira como o abuso acontece dentro das colônias torna isso um problema mais grave do que em outros lugares do mundo. “Essas garotas ou mulheres não têm uma saída”, diz Eve Isaak, clínica de saúde mental e conselheira de viciados e pessoas em luto que atende comunidades menonitas de Colônias Antigas no Canadá, Estados Unidos, Bolívia e México. “Em qualquer outra sociedade, crianças do primário sabem que podem, pelo menos em teoria, ir até a polícia, uma professora ou outra autoridade caso estejam sofrendo algum tipo de abuso. Mas a quem essas garotas podem recorrer?”
Embora não tenha acontecido de propósito, as igrejas da Colônia Antiga se tornaram o governo de fato. “A migração de antigos colonos pode ser entendida não só como um movimento para longe da sociedade, mas também em direção a países que permitam que eles vivam como escolheram”, Diz Helmut Isaak, marido de Eve, pastor e professor de história anabatista e de teologia no CEMTA, um seminário em Assunção, Paraguai. Ele explicou que antes dos antigos colonos migrarem para um novo país, eles mandam delegações para negociar os termos de autonomia com os governos locais, particularmente na área de aplicação de lei religiosa.
De fato, a série de estupros foi um dos únicos momentos nos quais a Colônia Antiga boliviana procurou por intervenção em uma questão interna. Os residentes de Manitoba me contaram que entregaram a gangue para os policiais em 2009 porque os maridos e pais das vítimas estavam tão enraivecidos que havia a possibilidade de os acusados serem linchados (um homem, que supostamente estava envolvido e foi pego numa colônia vizinha, foi realmente linchado e morreu depois devido aos ferimentos).
Os líderes da Colônia Antiga com quem falei negaram que exista um problema de abuso sexual em suas comunidades e insistiram que esses incidentes são tratados internamente quando surgem. “[Incesto] quase nunca acontece aqui”, me disse o pastor Jacob Fehr enquanto conversávamos em sua varanda ao pôr do sol. Ele disse que em seus 19 anos como pastor, Manitoba teve apenas uma caso de estupro incestuoso (pai e filha). Outro pastor negou até que esse episódio tivesse acontecido.
“Eles perdoam muita coisa nojenta que acontece nas famílias o tempo todo”, disse Abraham Peters, pai de um dos estupradores mais jovens condenados, Abraham Peters Dyck, que está atualmente na Prisão Palmasola, nos arredores de Santa Cruz. “Irmãos com irmãs, pais com filhas.” Ele acredita que seu filho e os outros foram falsamente incriminados para encobrir o incesto generalizado em Manitoba. Abraham pai continua vivendo em Manitoba; ele pensou em sair imediatamente após a prisão do filho, por causa da hostilidade do resto da comunidade. Mas desenraizar sua família de 12 pessoas se mostrou muito difícil, então ele ficou. Ele disse que, com o passar dos anos e apesar de sua perspectiva sobre a prisão do filho, ele foi aceito novamente no rebanho da colônia.
Agnes acha que os dois crimes são dois lados da mesma moeda. “Os estupros, o abuso, tudo está interligado”, ela disse. “O que torna os estupros diferentes é que eles não vieram de dentro da família e por isso os pastores tomaram a ação que tomaram.”
Claro, os líderes tentam corrigir o mau comportamento. Por exemplo, no caso do pai de Agnes: ele foi chamado em certo momento na presença dos líderes da igreja por causa das carícias às netas. Como manda o procedimento, ele ficou diante dos pastores e do bispo, que pediram que ele confessasse. Ele confessou e foi “excomungado”, ou temporariamente expulso da igreja por uma semana, depois foi oferecida a ele a chance de retornar, com base na promessa de que ele nunca mais faria isso novamente.
“Claro que tudo continuou depois disso”, disse Agnes sobre o pai. “Ele só aprendeu a esconder isso melhor.” Ela disse que não acreditava “em ninguém que, depois de apenas uma semana, diz que mudou sua vida”, antes de acrescentar “não tenho fé num sistema que permite isso”.
Criminosos mais jovens saem da situação ainda mais facilmente; de acordo com Agnes, o irmão que a estuprou admitiu seus pecados quando foi batizado e foi imediatamente expurgado aos olhos de Deus. Ele vive numa Colônia Antiga vizinha, Riva Palacios, com suas próprias filhas.
Uma vez que um perpetrador de abuso é excomungado e readmitido, a liderança da igreja assume que a questão está encerrada. Se o criminoso continua com o comportamento de forma flagrante e se recusar a se arrepender, ele é novamente excomungado e afastado permanentemente. Os líderes instruem o resto da colônia a isolar a família; o armazém vai se recusar a vender qualquer produto para a casa, as crianças serão expulsas da escola. A família não tem escolha a não ser partir. Isso, claro, também significa que as vítimas têm que ir embora com os agressores.
Mas não foi o abuso que finalmente levou Agnes e sua família a abandonar Manitoba em 2009. Seu marido comprou uma moto e, depois disso, foi excomungado e sua família afastada. Quando o bebê do casal morreu afogado num cocho de vaca, os líderes da comunidade não permitiram seu marido fosse ao funeral do próprio filho. Foi aí que eles deixaram Manitoba para sempre. No final, dirigir uma moto foi uma afronta maior para a liderança da colônia do que qualquer coisa que Agnes, suas filhas, ou o resto das mulheres da comunidade sofreram.
Manter uma comunidade como Manitoba unida está cada vez mais difícil nos tempos moderno. Agnes e sua família não foram os únicos a sair. Na verdade, a cidade próxima de Santa Cruz é povoada por famílias menonitas que ficaram fartas do modo de vida das Colônias Antigas — e a situação pode estar perto de atingir um ponto crítico.

Johan Weiber, apoiado em sua picape, é o líder do grupo de menonitas dissidentes em Manitoba.


"Não queremos mais fazer parte disso”, um jovem pai chamado Johan Weiber me disse, enquanto eu visitava sua casa em Manitoba. Johan e sua família eram uma das 13 outras ainda vivendo na colônia depois de deixar oficialmente a igreja da Colônia Antiga. Eles vinham tentado sair há meses — até já tinham veículos —  mas os líderes da colônia se recusavam a compensá-los pela terra que estariam abandonando. Agora eles estavam decididos a construir sua própria igreja dissidente dentro de Manitoba.

“Estamos [deixando a igreja da Colônia Antiga e começando nossa própria] porque temos lido a verdade”, Johan disse. Por “verdade”, ele queria dizer a Bíblia. “Eles nos dizem para não lermos a Bíblia porque se lermos vamos perceber coisas. Por exemplo, em parte alguma está escrito que o cabelo das mulheres tem que ser trançado daquele jeito”, ele disse, apoiando em sua picape enquanto sua filha de rabo de cavalo brincava no jardim.
Curiosa com as especificidades da instrução religiosa em Manitoba, num domingo, participei de um culto num dos prédios de tijolos indistinguíveis da colônia. Logo percebi que a cerimônia solene de 90 minutos não é uma prioridade. Chefes de família podem ir duas ou três vezes por mês, mas alguns vão até com menos frequência.
Para as crianças, o centro do currículo escolar é baseado em leituras selecionadas da Bíblia, mas fora uma oração silenciosa de 20 segundos antes de cada refeição, não há um tempo especificado ou exigido para orações e estudos da Bíblia no mundo adulto da Colônia Antiga.
“Muitos perderam o conhecimento bíblico”, disse Helmut Isaak, um historiador menonita. Ele explicou que, com o tempo, enquanto os menonitas paravam de ter que defender sua fé constantemente contra os perseguidores, preocupações mais práticas tiveram a preferência. “Para poderem sobreviver, eles precisavam passar o tempo trabalhando.”
Isso criou uma disparidade de poder crucial: um pequeno grupo de líderes da igreja se tornou o único interprete da Bíblia nas Colônias Antigas e, como a Bíblia é vista como a lei, os líderes usaram esse controle sobre as escrituras para incutir ordem e obediência.
Os pastores negam: “Encorajamos todos os outros membros a saber o que está escrito no livro sagrado”, disse o pastor Jacob Fern numa noite. Mas os residentes admitiram discretamente que aulas de estudo bíblico são desencorajadas e que as Bíblias são escritas em alto-alemão, uma língua que muitos adultos mal conseguem lembrar depois de sua educação limitada e, além disso, às vezes as versões em baixo-alemão são proibidas. Em algumas Colônias Antigas, membros encaram a excomunhão por se aprofundar muito nas escrituras.
É por isso que Johan Weiber era uma presença tão ameaçadora: ele aterrorizou a liderança e a comunidade como um todo. Ele também lembrou a todos do passado conturbado das Colônias Antigas. “Foi exatamente isso o que aconteceu no México e é por isso que viemos [para a Bolívia]”, disse Peter Knelsen, um residente de Manitoba de 60 anos que chegou do México com os pais quando ainda era adolescente. Não era só o governo mexicano que ameaçava as Colônias Antigas com reformas, mas também houve um movimento evangélico interno que queria “mudar nosso modo de vida”, disse Peter, que explicou que os dissidentes de sua colônia no México também tentaram construir sua própria igreja.
Por mais de 40 anos, os antigos colonos bolivianos conseguiram escapar de fraturas internas como essa. Mas com Johan Weiber tentando construir sua própria igreja — e os dissidentes exigindo sua própria terra em Manitoba para plantar e construir uma escola independente — Peter e os outros falam em um “apocalipse” iminente. As tensões quase explodiram em junho, depois de minha visita, quando o grupo de Johan realmente começou a construir sua própria igreja. Logo depois da construção começar, mais de 100 homens de Manitoba foram até o local e a derrubaram, tijolo por tijolo. “Acho que vai ser muito difícil manter a colônia intacta”, Peter me disse.
Se essa fratura continuar a aumentar e a crise vier à tona, os colonos de Manitoba já sabem o que fazer. Séculos atrás, os menonitas originais da Europa tiveram duas escolhas ao enfrentar a perseguição: lutar ou fugir. Devido a seu voto de pacifismo, eles fugiram — e continuam fugindo desde então.
Os líderes de Manitoba esperam não ter que chegar a isso. Em parte porque a Bolívia é um dos últimos países que os deixam viver sob seus próprios termos. Por enquanto, o pastor Jacob Fehr disse estar orando. “Só queremos que [o grupo de Weber] deixe a colônia”, ele disse. “Só queremos ser deixados em paz."


Heinrich Knelsen Kalssen, um dos estupradores, é levado do tribunal pela polícia em Santa Cruz, Bolívia.


No meu último dia em Manitoba, tive um choque.

“Você sabe que continua acontecendo, certo?”, uma mulher me disse, enquanto bebíamos água gelada perto de sua casa. Não havia nenhum homem por perto. Achei que alguma coisa tinha se perdido na tradução, mas minha tradutora de baixo-alemão me garantiu que não. “Os estupros com o spray — eles continuam”, ela disse.
Eu a enchi de perguntas: isso tinha acontecido com ela? Ela sabia quem estava fazendo? Todo mundo sabia o que estava acontecendo?
Não, ela disse, eles não voltaram à sua casa, mas à de uma prima — recentemente. Ela disse ter seu palpite sobre quem era o responsável, mas não me deu nenhum nome. E ela acreditava que sim, a maioria das pessoas na colônia Manitoba sabia que a prisão dos estupradores originais não tinha colocado um fim nos crimes em série.
Como se eu estivesse num estranho túnel do tempo, depois de dezenas de entrevistas com pessoas me dizendo que tudo estava bem agora, eu não sabia se aquilo era apenas fofoca, rumores, mentiras ou — pior — a verdade. Passei o resto do dia tentando freneticamente conseguir uma confirmação. Visitei novamente muitas das famílias que tinha entrevistado antes e a maioria admitiu, um pouco envergonhada, que sim, tinham ouvido os rumores e achavam que provavelmente eram reais.
“Certamente, não é mais tão frequente”, disse, mais tarde naquele mesmo dia, um jovem cuja esposa foi estuprada na primeira série de incidentes antes de 2009. “[Os estupradores] estão sendo muito mais cuidadosos do que antes, mas ainda acontece.” Ele disse que também suspeitava de quem poderiam estar cometendo os crimes, mas não me deu mais nenhum detalhe.
Numa viagem subsequentes de Noah Friedman-Rudovsky, o fotógrafo desse artigo, cinco pessoas deixaram registrado — incluindo três colonos de Manitoba, um promotor de justiça e um jornalista local — que ouviram dizer que os estupros continuavam.
Aqueles com quem falei disseram que não tinham como impedir os supostos ataques. Ainda não há uma força de policiamento na área e nunca houve nenhum elemento proativo ou grupo de investigação que pudesse procurar pelos culpados pelos crimes. Todos na colônia são livres para acusar outra pessoa para os pastores, mas os crimes são abordados com o sistema da honra: se um perpetrador não está pronto para confessar seus pecados, a questão é se a vítima ou o acusador serão levados a sério... E as mulheres em Manitoba já sabem como isso termina.
A única defesa, segundo os residentes, é instalar fechaduras melhores, barras nas janelas ou grandes portas de ferro como aquela atrás da qual dormi durante minha visita. “Não podemos colocar iluminação nas ruas ou câmeras de segurança”, o marido de uma das vítimas me disse — as duas tecnologias não são permitidas. Para que isso pare, acredita-se que, como antes, é preciso pegar alguém em flagrante. “Então vamos ter que simplesmente esperar”, ele disse.
Naquele último dia, antes de deixar Manitoba, retornei para visitar Sara, a mulher que acordou com a corda ao redor dos pulsos quase cinco anos atrás. Ela disse que também tinha ouvido os rumores sobre os estupros continuarem e deu um suspiro sentido. Ela e sua família se mudaram para uma nova casa depois que a gangue foi presa em 2009. A casa antiga guardava muitos demônios. Ela disse que se sentia mal em saber que outras estavam vivendo seus horrores do passado, mas que não sabia o que podia ser feito. No final das contas, seu tempo na Terra, como o de todos os menonitas, é para ser de sofrimento mesmo. Antes que eu fosse embora, ela me ofereceu o que devia considerar palavras de consolo: “Talvez seja o plano de Deus”.
Nota do editor: Os nomes das vítimas de abuso e estupro foram mudados a pedido delas.
Para uma visão mais aprofundada sobre o escândalo na colônia Manitoba, assista ao nosso documentário: Os Estupros Fantasma na Bolívia, que entra no ar este mês aqui na VICE.com.