Descrição da imagem: celebração no saguão do Centro de Convenções Ulysses Guimarães, em Brasília, onde havíamos acabado de esvaziar a cerimônia de abertura do Congresso de Prevenção em 2010.
Lembro muito bem daquela noite. Estávamos em
Floripa, ano de 1999, para um dos encontros da sala HIV da internet onde
pessoas vivendo ou não com o vírus de todo o Brasil celebravam a Vida. Eu,
Peace, Eusp, Matheus/SP, LOA, Hebe, Fernando/RJ, (Crix) Ivan e mais algumas
cujo apelido não me recordo, comemorávamos o aniversário de Matheus em um belo
restaurante com uma vista panorâmica da cidade. E, na hora de cantar os
parabéns, entoamos felizes:
- Parabéns a você nessa data querida, muitas
felicidades, laralalaraláááá!!!
Juro, esse final não estava combinado e foi
cantado simultaneamente por todos. Claro, caímos em uma sonora gargalhada
chamando a atenção dos demais presentes para aquele alegre grupo de pessoas
cuja maioria, ninguém diria, vivía com HIV. Aquele final não fazia parte de uma
celebração, era uma forma nervosa e divertida de expressar nossa expectativa de
vida: um dia de cada vez. O coquetel havia chegado muito recentemente e muitas
dúvidas povoavam nossas almas já marcadas por várias perdas e desafios. Será
que vai funcionar mesmo? Já se falava em efeitos colaterais, até onde iriam?
Cura? Nem pensar, segundo a ciência isso seria quase impossível pelas
características da infecção e do próprio vírus.
Agora a comunidade científica internacional tem
se atido mais a esse tema, a cura. Os financiadores perceberam que com AIDS o
buraco é mais embaixo e que essa história de doença crônica e sob controle é
pura balela. Muito disso se deve às pessoas com HIV de Nova Iorque que fizeram
do envelhecimento precoce, o pai dos efeitos colaterais, uma pauta dirigida às
publicações classe A dos EUA, as revistas que os investidores lêem no banheiro.
Pesquisas voltaram a se propagar pelo mundo, retomando um ramo que
havia declinado em mais de 90% após a descoberta do coquetel e hoje temos
alguns resultados concretos, que sinalizam que é possível chegar à cura da
AIDS, já com dezesseis casos anunciados, conforme matéria da última edição da
revista Super Interessante, já repercutida neste blog através do artigo 'A cara
da cura'.
Naturalmente ainda levará alguns anos para que as
descobertas recentes sejam mais bem avaliadas, que sejam verificados os prováveis
efeitos colaterais e sua extensão, discutir profundamente os aspectos éticos
envolvidos... Mas é um senhor avanço a gente estar falando sobre ela, a cura,
de forma aberta e com perspectivas reais de se concretizar. No entanto, tenho
recebido algumas críticas, feitas por amigos queridos, sobre meu otimismo com
relação ao assunto. De que ainda há muito que fazer e que isso provocaria um
temor de ser um 'falso positivo'. A todos respondi igualmente: eu sei que ainda
tem muito que fazer, mas a gente tem que festejar cada pequeno ou grande avanço
em direção à cura. A expectativa de chegada do coquetel era somente para o
século 21, mas acabou sendo descoberto em 1995. Quem sabe esse tempão se
transforme em um lapso e, aí sim, seremos surpreendidos novamente, como diria
Zagalo.
Aí eu volto no tempo e me recordo também de outra
situação, no Encontro de Pessoas Vivendo com HIV dos grupos Pela Vidda do Rio e
Niterói em 2008. A mesa era sobre pesquisas, auditório cheio, e foi dado início
ao debate que seguiu após as apresentações dos pesquisadores. Eu tenho o braço
treinado para se levantar sozinho quando eu ouvir algumas palavras como
'Bem...', 'Vamos...' ou outras que sinalizam o início de inscrições para as falas,
mas desta vez eu perdi para um irmão do Rio de Janeiro. Quando ele terminou eu
disparei minha questão, detonando o seguinte diálogo:
- Ouvi atentamente as exposições de vocês e não
foi feita nenhuma menção à cura do paciente de Berlim que acaba de ser
noticiada.
- É por isso que nós não gostamos de anunciar os
resultados de pesquisas, eles despertam esperanças nas pessoas e...
Interrompi o pesquisador, claro que pedindo
licença:
- Peraí, com licença... Mas vocês acham que a
gente vive de que? A gente vive de esperança que um dia isso acabe e ela deve
ser propagada e festejada sempre que possível.
Ao que o auditório ruiu em ovação com gritos de
'eu também, eu também'. O palestrante refletiu um tempo e depois se desculpou
pela má colocação de palavras e tal.
Acredito que um dos piores efeitos colaterais do
coquetel foi a acomodação das pessoas vivendo com HIV, engajadas à luta contra
a AIDS ou não. Hoje as pessoas se valem da (in)cômoda invisibilidade, vão ao
serviço de assistência uma vez por mês para pegar seus medicamentos, a cada
três para repetir exames de controle e consulta médica. Claro, quando esse
nível de atenção permite esses 'luxos' do SUS, afinal, a tendência no Brasil é
de descentralizar nosso atendimento para as UBSs e ai a cobra vai fumar. Quem
sabe, seguindo a lógica de que a necessidade é a mãe da atitude, as pessoas
voltem a pensar em sua existência como seres políticos e o engajamento volte a
ser o que era antes do coquetel. Enfim, isso é outra história, aqui falamos
sobre celebrações. E essa prática também foi esquecida pelos ativistas, muito
ocupados que estão com a sustentabilidade de suas ações, com o fechamento de
ONGs por falta de apoio, com os efeitos colaterais que os tem consumido... São
tantas as perdas de diretos e desafios cotidianos que não sobra tempo e nem
pique para festejar. Tanto que foi uma surpresa para muitos o fato de festejarmos ruidosamente o sucesso de uma ação de ativismo em um evento em Brasília, tendo sido taxados de mal educados por alguns.
Mas temos que fazer um esforço. Se a vida lhe deu
um limão, pegue uma boa vodka e prepare uma caipiroska com bastante gelo, assim
a carga de preocupações dá um tempo e, quem sabe, nesse momento você tenha uma
ótima idéia para melhorar a Vida. Temos que usar essa esperança não para nos
iludir mas, sim, para reforçar a importância da adesão ao tratamento, de
exercícios físicos regulares, de boas práticas no dia a dia evitando qualquer
tipo de abuso e, sobretudo, a importância de mantermos cada vez mais viva a Fé
em nossos corações. E quando falo em Fé não me refiro necessariamente a uma
religião ou seita. Mas, sim, na crença de que amanhã será melhor que hoje e que não brigamos tanto para morrer na praia, literalmente.
Temos que festejar mais, vibrar mais com essas
conquistas como se fossem nosso aniversário, como festejo hoje meus cinqüenta e
dois anos muito vem vividos, em boa parte devido a amizades muito
fortalecedoras. A celebração é um fixador das vitórias em nossos corações. Isso faz bem para a imunidade e para as atitudes que tomaremos
em nosso dia a dia. E nunca mais termos que cantar 'laralalaralááááá...' ao
final do parabéns a você. Não que muitos anos de vida sejam uma certeza, nunca
são. Mas voltaram a ser um sonho possível.
Beto Volpe
to junto e misturada querido amigo....
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