“Quando vi nessa cidade tanto horror e iniquidade, resolvi tudo explodir.”
Chico Buarque de Hollanda em ‘A Ópera do Malandro’
Chico Buarque de Hollanda em ‘A Ópera do Malandro’
Descrição da imagem: Geni, em atmosfera de névoa, observa o dirigível que se aproxima, em vôo rasante e ameaçador.
Desde que me maravilhei com a letra de Geni e o Zepellin, uma das músicas da desafiadora ópera brasileira nos anos de chumbo da ditadura militar, atribuí à tal iniquidade um sentido equivocado, eu a associava a desigualdade e ponto. Nas últimas eleições majoritárias eu recebi um vídeo de um pastor evangélico do Paraná onde o mesmo criticava duramente uma das candidaturas, mas o que me chamou a atenção foi a parte evangelizadora do vídeo na qual o pastor pregava contra a iniquidade. E aprendi que uma sociedade vive uma situação de iniquidade quando os valores por ela eleitos como norteadores do que é ou não aceito se deterioram a tal ponto que, além de passarem a acontecer de forma rotineira e democratizada, passam a vigir como o novo código dessa sociedade.
Não é preciso filosofar nada a respeito, muito menos abrir nossas caixas de ferramentas para se constatar que vivemos um estado de iniquidade nos dias de hoje. Basta olhar ao nosso redor, seja no trânsito, no supermercado, nas relações de trabalho e de confiança, no público alvo de ações e projetos da sociedade civil e do governo. Mais que o comportamento, os valores mudaram. São valores efêmeros, imediatos e convenientes, não existe mais uma idealização de um mundo melhor para além da comodidade. Saramago diz que ‘estamos nos acostumando tanto a ter direitos que esquecemos que para cada direito existe um dever correlato.’ E quando o direito é de outrem, o dever passa a ser nosso e essa dinâmica simplesmente é apagada do código social. Dia desses participei de uma cena e assisti a outra pela televisão: dei uma bronca pública em uma mulher que quase foi atropelada quando ‘ensinava’ sua filha de uns oito anos a atravessar no sinal fechado para o pedestre e à noite vi pela TV uma manifestação em protesto ao atropelamento de uma criança que voltava do colégio de bicicleta, não respeitou a sinalização e morreu atropelada.
Juro que não quero parecer amargo, quem me conhece sabe que minhas mais conhecidas características são o bom humor e a confiança em dias melhores. Mas fica difícil acreditar neles quando se vê, por exemplo, o bulling tomando conta de nossas crianças da mais tenra idade e as mulheres sendo cada vez mais banalizadas, brutalizadas e vitimadas por malucos que as amam demais (sic). A iniquidade é tão sorrateira e tem tanto poder de propagação quanto a AIDS, atinge até os santuários de onde se espera a resistência que perpetuou nossa civilização até os dias de hoje, mesmo diante das catástrofes por nós mesmos criadas. Hoje atravessamos mais um episódio de falta de medicamentos anti HIV e nada plausível foi dito pelo Ministério da Saúde que ao menos tentasse justificar o injustificável. Afinal, é normal ter problemas no processo de abastecimento que vão se somando, se somando, se somando....
Agora, o que mais entristece, para não dizer revolta e emputece (desculpem o termo), é o silêncio da sociedade civil sobre o assunto. Perdeu-se o sentido de urgência que a AIDS tem em suas vísceras. Os mesmos passivistas que se esconderam por detrás dos pilares do auditório Ulysses Guimarães continuam atrás das cortinas, rezando para que não falte seu medicamento ou, quem sabe, sua quimioterapia. A mesma sociedade civil que me apaixonou pela vida social, pelas noções de direitos e deveres, por ser pro ativo e saber a importância que isso tem para a comunidade. O mesmo movimento social organizado do qual me afastei bastante contrariado e artigos anteriores meus podem dar maiores detalhes a respeito. E não sou somente eu, outras pessoas, Ativistas, também estão afastadas e cada vez mais contrariadas com a iniquidade que impera no MOVAIDS.
É, pessoal... Na plenária do Encontro de Pessoas com HIV/AIDS ocorrido em 2007 na cidade de Manaus eu disse, em tom de ironia, que qualquer dia seria formada a Rede de Pessoas Sequeladas pela AIDS, que traria de volta ao movimento o sentimento de urgência tão defendido por Betinho na luta contra a fome. Não uma rede, mas uma horda de famintos que estão em sua última formulação possível do coquetel, pessoas que rodam em suas cadeiras, enxergam ou se apóiam em suas bengalas, pessoas que já deitaram à mesma cama que a Morte e que combinaram com ela que só iriam se alguém pisasse na bola. E tem muita gente pisando feio na bola. Daí o convite para você que se encaixa em alguma das características citadas neste parágrafo, seja no aspecto clínico ou da indignação: queira, por favor retirar seu bilhete em meu guichê no Facebook e embarcar no Zepellin da Resistência.
Chega de tanto horror e iniquidade porque nossa fome é de Vida.
Beto Volpe
Belíssimo texto Beto parabéns!
ResponderExcluirBeto Volpe! Você, como sempre, com seus belos textos expondo mais uma vez toda a gama de uma série de fatores que precisam ser vistos, revistos, modificados e monitorados para que a nossa sociedade possa ter uma vida mais humana, digna e prazerosa.
ResponderExcluirAgora, quanto à música do Chico... uma vez, há muito tempo atrás, eu estava conversando com uma tia minha que se chama Geni e toquei no nome do Chico. Rapaz! Por um momento, achei que ia ficar sem cabeça!!!
Um abração! FabianoCaldeira.
Betão, mano velho !
ResponderExcluirA expliação para o que lhe emputece, ou seja " o silêncio da sociedade civil sobre o assunto", é obvia: veja por onde andam determinadas lideranças do MOV/AIDS e conclua que esta explicação está em uma outra letra, de uma outra música, de um outro musical de Chico Buarque de Hollanda e Ruy Guerra (Calabar, o Elogio à Traição): VENCE NA VIDA QUEM DIZ SIM.
Bjs
Claúdio Monteiro