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Sou muito humorado. Se bem ou mal, depende da situação...

Em 1989 o HIV invadiu meu organismo e decretou minha morte em vida. Desde então, na minha recusa em morrer antes da hora, muito aconteceu. Abuso de drogas e consequentes caminhadas à beira do abismo, perda de muitos amigos e amigas, tratamentos experimentais e o rótulo de paciente terminal aos 35 quilos de idade. Ao mesmo tempo surgiu o Santo Graal, um coquetel de medicamentos que me mantém até hoje em condições de matar um leão e um tigre por dia, de dar suporte a meus pais que se tornaram idosos nesse tempo todo e de tentar contribuir com a luta contra essa epidemia que está sob controle.



Sob controle do vírus, naturalmente.



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Beto Volpe



segunda-feira, 21 de julho de 2014

Bodas de HIV





Quem diria que, vinte e cinco anos após minha infecção pelo HIV, eu estaria escrevendo sobre isso sem o auxílio de um médium. As expectativas em julho de '89 eram as piores possíveis, não havia conhecimento sobre o assunto e muito menos um tratamento eficaz. Minha primeira perícia médica foi feita atrás de uma linha amarela que me colocava a dois metros e meio do perito e assistir minha imunidade declinar me fazia antever o mesmo fim de muitos amigos que se foram, não sem antes ficarem cegos, acamados, dependentes e perplexos em deixar a vida tão cedo.

Até que chegou minha vez, com cinco oportunistas seguidas, dentre elas uma pneumonia, três episódios de neurotoxoplasmose e, principalmente, uma candidíase que quase  me levou, reduzindo meu peso à metade e fazendo meu médico acreditar que eu estaria terminal. Contradizendo essa cruel certeza científica, a Vida mostrou que nada havia terminado, estava tudo apenas começando. O coquetel havia chegado e eu via uma sensível melhora em meus exames laboratoriais, ainda que não corresse, dançasse ou rebolasse como antigamente, por conta da seqüela das toxos. Nada havia terminado, como havia decretado o doctor, tudo estava apenas começando.

Beijar a boca da Morte e continuar vivo para contar para todo mundo não é tarefa fácil e eu havia conseguido, através do amor de minha família, de uma atenção especializada e dos avanços da ciência. Pouco a pouco restabelecia meu peso, minha saúde e minha vida social, quando outro fantasma apareceu, o dos efeitos colaterais. Por mais que me alimentasse, meu rosto e membros iam ficando chupadinhos e meus níveis de gordura no sangue atingiam patamares mais que preocupantes. Era a lipodistrofia, que veio seguida de osteoporose com fratura de fêmur, osteonecrose com instalação de prótese bilateral nos quadris, dois tumores com radioterapia e quimioterapia, além das vinte e três cirurgias a que fui submetido até hoje.

Mas o mais forte dos efeitos colaterais também me acometeu: a cidadania, que eu não tinha antes do HIV entrar em meu corpo, me possuir e mudar minha Vida por completo. Ao contrário dos casamentos convencionais, essa união começou na tristeza para depois atingir sua plenitude. Eu e outras pessoas com HIV de São Vicente fundamos a ONG Hipupiara, que capitaneou a luta pela atenção a efeitos colaterais no Brasil, que defendeu duas teses no Supremo Tribunal Federal e que sempre se manteve liberta de interesses escusos ou corporativos.

Mas, acima disso tudo, a infecção pelo HIV me proporcionou a oportunidade de reescrever minha história, de mudar meus caminhos, de ser um humano melhor. Se hoje eu consigo dormir tranqüilo é porque o faço com orgulho do dia que tive e das atitudes que tomei. Pode parecer estranho, mas se houver um porteiro no Céu e ele me perguntar qual a melhor coisa que me aconteceu em Vida, não hesitarei em responder que foi ter me infectado com o HIV. Apesar de todas as dificuldades e de todas as perdas, foi ele que me tirou da mediocridade em que vivia e deu sentido à minha Vida.

Até que a Morte nos separe, seja a minha ou a dele.


Beto Volpe 

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