Quem diria que, vinte e cinco anos após minha infecção pelo
HIV, eu estaria escrevendo sobre isso sem o auxílio de um médium. As expectativas
em julho de '89 eram as piores possíveis, não havia conhecimento sobre o
assunto e muito menos um tratamento eficaz. Minha primeira perícia médica foi
feita atrás de uma linha amarela que me colocava a dois metros e meio do perito
e assistir minha imunidade declinar me fazia antever o mesmo fim de muitos
amigos que se foram, não sem antes ficarem cegos, acamados, dependentes e perplexos
em deixar a vida tão cedo.
Até que chegou minha vez, com cinco oportunistas seguidas,
dentre elas uma pneumonia, três episódios de neurotoxoplasmose e, principalmente,
uma candidíase que quase me levou,
reduzindo meu peso à metade e fazendo meu médico acreditar que eu estaria
terminal. Contradizendo essa cruel certeza científica, a Vida mostrou que nada havia terminado, estava
tudo apenas começando. O coquetel havia chegado e eu via uma sensível melhora
em meus exames laboratoriais, ainda que não corresse, dançasse ou rebolasse
como antigamente, por conta da seqüela das toxos. Nada havia terminado, como
havia decretado o doctor, tudo estava apenas começando.
Beijar a boca da Morte e continuar vivo para contar para todo
mundo não é tarefa fácil e eu havia conseguido, através do amor de minha
família, de uma atenção especializada e dos avanços da ciência. Pouco a pouco
restabelecia meu peso, minha saúde e minha vida social, quando outro fantasma
apareceu, o dos efeitos colaterais. Por mais que me alimentasse, meu rosto e
membros iam ficando chupadinhos e meus níveis de gordura no sangue atingiam
patamares mais que preocupantes. Era a lipodistrofia, que veio seguida de
osteoporose com fratura de fêmur, osteonecrose com instalação de prótese
bilateral nos quadris, dois tumores com radioterapia e quimioterapia, além das
vinte e três cirurgias a que fui submetido até hoje.
Mas o mais forte dos efeitos colaterais também me acometeu: a
cidadania, que eu não tinha antes do HIV entrar em meu corpo, me possuir e mudar
minha Vida por completo. Ao contrário dos casamentos convencionais, essa união
começou na tristeza para depois atingir sua plenitude. Eu e outras pessoas com
HIV de São Vicente fundamos a ONG Hipupiara, que capitaneou a luta pela atenção
a efeitos colaterais no Brasil, que defendeu duas teses no Supremo Tribunal
Federal e que sempre se manteve liberta de interesses escusos ou corporativos.
Mas, acima disso tudo, a infecção pelo HIV me proporcionou a
oportunidade de reescrever minha história, de mudar meus caminhos, de ser um humano
melhor. Se hoje eu consigo dormir tranqüilo é porque o faço com orgulho do dia
que tive e das atitudes que tomei. Pode parecer estranho, mas se houver um
porteiro no Céu e ele me perguntar qual a melhor coisa que me aconteceu em Vida,
não hesitarei em responder que foi ter me infectado com o HIV. Apesar de todas
as dificuldades e de todas as perdas, foi ele que me tirou da mediocridade em
que vivia e deu sentido à minha Vida.
Até que a Morte nos separe, seja a minha ou a dele.
Beto Volpe
Guerreiro, adorei o texto! abraço, Alfredo
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