Beto Volpe
Mais
um. Em outros países, o brutal assassinato de um adolescente homossexual de 16 anos de
idade seria uma notícia que comoveria a sociedade e nos chocaria a todos como
poucas notícias nos chocam. Um garoto que ainda estava na escola, com toda uma
vida pela frente, arrancado da existência, despojado de toda humanidade, com
todos os dentes arrancados e uma barra de ferro dentro da perna. Um menino
cheio de futuro que acaba seus dias com traumatismo craniano e intracraniano,
com o corpo todo sujo, abandonado sem vida numa avenida da região central de
São Paulo. Em outros países, seria manchete de capa de todos os jornais. A
Presidenta falaria em cadeia nacional. O país inteiro reclamaria justiça. Os
poderes públicos reagiriam de imediato. No Chile, um crime semelhante mudou as
leis do país e fez governo e oposição coincidirem na necessidade de políticas
públicas para enfrentar o preconceito contra a população LGBT.
Daniel Zamudio,
falecido no dia 27 de março de 2012 depois de vinte dias de agonia em um
hospital de Santiago, acabou dando seu nome à lei contra a homofobia que o
próprio presidente Piñera (um empresário católico de direita) se decidiu a
apoiar. Daniel tinha sido golpeado até ficar inconsciente. Apagaram cigarros no
corpo dele, desfiguraram seu rosto, o apedrejaram reiteradas vezes, arrancaram
parte de sua orelha, bateram com uma garrafa na cabeça dele, quebraram suas
pernas fazendo alavanca com elas até o limite da resistência dos ossos e
desenharam três cruzes esvásticas na sua pele com troços de vidro. O país
inteiro reclamou justiça e os assassinos, quatro jovens como ele que
acreditavam que, por ser gay, não merecia viver, foram condenados pela justiça
num processo histórico. O líder do grupo recebeu prisão perpétua.
Mas no
Brasil, Kaique Augusto Batista dos Santos é mais um, só mais um. Um dado mais
numa estatística que, de tão terrível, já passa despercebida. Em 2012, o mesmo
ano em que Daniel Zamudio perdeu a vida no Chile, 338 pessoas foram
assassinadas por serem gays, lésbicas, travestis ou transexuais no Brasil, 27%
mais que no ano anterior, que registrou 266 homicídios homo/lesbo/transfóbicos,
317% mais que em 2005, quando o Grupo Gay da Bahia contabilizou 81 casos. E
esses números são apenas o pouco que sabemos, porque o Estado não investiga.
São estatísticas informadas por uma organização da sociedade civil, recolhidas
de matérias publicadas na imprensa e informação das famílias. O número real,
portanto, deve ser maior. Kaique é mais um nessa estarrecedora lista de mortos
com a qual o Brasil convive com naturalidade. Sua morte não é uma exceção, não
surpreende ninguém, não abala o país.
A Presidenta, como sempre, não disse
nada. Para o governo Dilma, aliado do fundamentalismo religioso e das máfias
que pregam o ódio contra todos aqueles que amam diferente, a morte desses
meninos não é um fato importante, que mereça a atenção do Estado. A própria
Presidenta já disse, justificando o cancelamento de políticas públicas de
prevenção e combate à homofobia e ao buyilling nas escolas, que não faria
"propaganda da homossexualidade", como se aquilo fosse possível. Vocês
já imaginaram um governante dizendo, para explicar por que se opõe a qualquer
política pública contra o racismo, que não admitirá a "propaganda da
negritude"? Como eu já escrevi tempo atrás, em ocasião de outros
assassinatos como este, em cada caso aparece, como pano de fundo, o discurso de
ódio alimentado por igrejas caça-níquel e pela bancada fundamentalista no
Congresso federal, que em 2013 ganhou de cínico presente, com o apoio da
bancada governista, a presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da
Câmara dos Deputados.
É claro que a violência é praticada por pessoas violentas
e os agressores são responsáveis por seus atos, mas não é por acaso que as
vítimas dessas agressões sejam, repetidamente, jovens homossexuais, e que
muitas vezes as pancadas venham acompanhadas por citações bíblicas. A culpa não
é da Bíblia, mas dos charlatães que, em nome de uma fé que não têm, distorcem
seu texto e seu contexto para usá-la contra a população LGBT, pregando o ódio e
convocando a violência. Eles fazem isso por dinheiro e poder — ou você acha que
realmente acreditam em alguma coisa? — e o resultado é um país que já se
acostumou a assistir no Jornal Nacional à morte de mais um jovem gay, mais uma
jovem lésbica, mais uma travesti ou uma pessoa transexual, vítimas do ódio
irracional que os fundamentalistas promovem. Essa loucura tem de parar! E tem
que parar a hipocrisia e o oportunismo dos políticos sem coragem que fazem de
conta que não veem o que acontece e continuam subindo fazendo acordos com o
fundamentalismo para ganhar minutos de TV e palanques na campanha. Isso custa
vidas! Semanas atrás, o Senado federal enterrou o PLC-122, um projeto de lei
que pretendia equiparar a homofobia ao racismo, agravando as penas dos crimes
de ódio contra a população LGBT e punindo as injúrias homofóbicas e a incitação
à violência e ao preconceito.
É público que eu tenho diferenças de concepção
com o texto desse projeto, porque acho que não é apenas pela via do direito
penal que vamos acabar com a homofobia e porque acredito que o aumento do
estado penal, inclusive nesses casos, não é uma boa ideia. Acredito que a
homofobia deve ser crime, sim, e que não pode receber um tratamento diferente
ao que recebem os crimes de motivação racista. Acredito, também, que os crimes
violentos cometidos por motivo de ódio contra alguma das "categorias
suspeitas" que o direito internacional reconhece (negros, judeus,
mulheres, homossexuais, transexuais, estrangeiros de nacionalidades
estigmatizadas, pessoas com deficiência etc.) devem ter suas penas agravadas, e
que as injúrias e atos discriminatórios não-violentos devem receber penas
alternativas — não a cesta básica ou a simples multa, mas penas socioeducativas
que sirvam para "curar" essa doença social que chamamos preconceito.
Contudo, também acredito que com isso não basta e que o direito penal não pode
ser o eixo da política pública contra esse problema: precisamos de programas
contra o buylling nas escolas, de campanhas nacionais contra o preconceito, de
investimento público em políticas em favor da diversidade, de uma legislação
que permita às pessoas se defenderem da discriminação no trabalho, no acesso
aos serviços públicos e em outros âmbitos da vida social. Precisamos de uma
forte e decidida ação dos poderes públicos para acabar com a violência
homofóbica e com todas as formas de discriminação legal que a legitimam, por
isso meu mandato impulsionou a campanha pelo casamento igualitário e a lei de
identidade de gênero e promove regras para a inclusão e políticas afirmativas
que favoreçam as minorias estigmatizadas.
Contudo, a decisão do Senado de
enterrar o PLC-122 não foi motivada por uma discussão séria sobre qual é a
melhor política contra a homo/lesbo/transfobia, mas pela decisão da maioria dos
senadores de que não haja nenhuma política contra ela. Não é por acaso que o
pastor Silas Malafaia, um dos líderes do Ku Klux Klan antigay brasileiro,
parabenizou os senadores e, em especial, o senador Lindberg Farias, um dos
líderes da causa homofóbica no governista Partido dos Trabalhadores. E o
enterro do PLC-122 veio coroar uma política de Estado, implementada pelo
governo Dilma, que incluiu o cancelamento do programa "Escola sem
homofobia", a destruição de todos os programas e projetos contra a
discriminação no âmbito da saúde pública, a oposição ao casamento igualitário
(regulamentado pelo Conselho Nacional da Justiça após uma ação promovida pelo
meu mandato junto ao PSOL e à ARPEN-RJ, mas ainda engavetado no Congresso),
além daquela desastrada declaração da Presidenta sobre a "propaganda
homossexual", em linha com a retórica internacionalmente repudiada do
governo russo de Vladimir Putin.
Em meio a tudo isso, Kaique foi morto. Mais
um. E mais outros virão. Quantos? De quantos mortos o Brasil precisa para
reagir? Eu já disse uma vez e vou repetir. Cada uma dessas vítimas tem um algoz
material — o assassino, aquele que enfia a faca, que puxa o gatilho, que
"desce o pau", como o pastor Malafaia pediu numa de suas famosas
declarações televisivas. Mas há outros algozes, que também têm sangue nas mãos.
São aqueles que, no Congresso, no governo e nas igrejas fundamentalistas,
promovem, festejam, incitam ou fecham os olhos, por conveniência, oportunismo,
poder e dinheiro, cada vez que mais um Kaique é morto. Eles também são
assassinos. Como deputado federal, mas também como cidadão gay desse país, e
antes disso tudo, como ser humano não consegue conviver com a violência e o
ódio como se fossem naturais, ficarei à disposição da família e dos amigos de
Kaique e farei tudo o que puder para que esse e outros crimes sejam
esclarecidos e não fiquem impunes. Como dizia o poeta Pablo Neruda, chileno
como Daniel Zamudio, "por esses mortos, nossos mortos, eu peço
castigo".
Jean Wyllys é deputado federal pelo PSOL.
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