Artigo publicado no portal Agência de Notícias da AIDS com algumas reflexões sobre o ano que vem e a luta contra a AIDS.
Beto Volpe
Descrição da imagem?: imagem de uma cruz em cinza versus uma caldeirinha prateada com detalhes em dourado.
No horóscopo chinês, o ano de 2014 será representado pelo Cavalo de Madeira, cujas características são o movimento, a capacidade de transformação e a rapidez com que tudo isso acontece. No Brasil será o ano do Cavalo Louco, em que o país calçará suas chuteiras para a ‘maior Copa do Mundo de todos os tempos’ e muitos candidatos a cargos representativos serão ungidos em troca da vida eterna ao lado do trono, sabe-se lá de quem. Em meio ao leilão do poder, onde leva o apoio quem oferece maiores vantagens, um Ministro da Saúde demissionário e um diretor nacional em Aids bem intencionado, porém precipitado em algumas decisões, banalizam a epidemia de Aids ao ponto de considerá-la básica. Esse ano que inicia pode significar o fim de muito pelo que se lutou durante 30 anos de conhecimento da Aids e joga por terra a saudosa e tão benéfica sinergia entre governo e sociedade civil que já fez o Brasil ser reconhecido como o melhor programa do mundo.
É sabido que o Ministro da Saúde não apita muito na área de Aids, ele é embalado pelo mau humor da bancada evangélica do Congresso Nacional, que já o obrigou a censurar três campanhas de prevenção e direitos humanos para jovens, gays e prostitutas. Oras, se falar em gays e prostitutas em um ano comum é tido como prejudicial a qualquer político, imaginem em ano eleitoral. Tanto o atual ministro, virtual postulante ao governo do estado de São Paulo, quanto aquele que o suceder não moverão uma palha para esses segmentos sociais e, por sua vez, o atual diretor do Departamento de Aids, Dr Fábio Mesquita, que chega do sudeste asiático ao Brasil após uma série de mal entendidos entre o antigo diretor e o ministro, anuncia que o país irá adotar novas tecnologias de diagnóstico, prevenção e assistência.
O fato é que já está decidido: a partir do segundo semestre teremos testes de HIV na farmácia mais próxima e muita gente se pergunta: o que foi feito com o conhecimento acumulado sobre revelação de diagnóstico? Um estudo da USP em 2010 demonstrou que 81% das mulheres que receberam o diagnóstico de câncer de mama, de impacto similar ao da Aids, desenvolveram estresse pós traumático. O que acontece é que pessoas, com ou sem HIV, que atuam no combate à Aids presenciaram uma grande evolução no conhecimento que passaram a ver a doença ‘assim como uma diabetes’. Outros, em cargos técnicos ou em eternas representações no movimento social, perderam o contato com suas bases e não percebem que uma coisa não mudou com o tempo: o chão some quando se recebe esse diagnóstico. As pessoas com HIV gritaram, o Conselho Federal de Psicologia manifestou sua ‘enorme preocupação’, mas a estratégia foi considerada positiva por notórias lideranças do movimento, algumas delas com visíveis intenções partidárias.
E se a Aids é ‘assim como uma diabetes’, por que não tratá-la nas UBSs? Segundo o ministro e o diretor elas estão preparadas para absorver a demanda e é preciso abrir as portas do SUS para a Aids. Oras, senhores, uma rede básica mal remunerada, desestimulada e atolada em afazeres, que não conseguiu dar cabo da sífilis congênita e da tuberculose, como conseguirá colher bons frutos com a Aids? Ainda que dê conta, como ficará o sigilo do diagnóstico em uma sociedade cada vez mais repleta de preconceitos? E a atenção multidisciplinar? E a vigilância em eventos adversos? São perguntas demais para uma ação com conseqüências devastadoras na vida das pessoas com HIV.
O governo fala muito sobre a falta de diálogo com as ONGs e Redes, mas esse diálogo foi corrompido desde que o próprio governo passou a ser o financiador de um movimento que deveria fiscalizá-lo. Cooptações de lideranças, viagens, representações e dinheiro fizeram com que um movimento outrora transgressor se transformasse em um punhado cada vez menor de ONGs e de pessoas cada vez menos comprometidas com sua missão e cada vez mais com objetivos pessoais ou mesmo governamentais. Há quem diga que o movimento de luta contra a Aids irá acabar e talvez isso seja necessário, para que outro irrompa com maior comprometimento. Uma pena pelas poucas ONGs e pessoas que dão sua vida pela luta.
Mas, sem dúvida, o que irá marcar o ano novo será o esperado avanço do fundamentalismo religioso na cena política brasileira. Ligações perigosas com esse setor acabaram por deixar a democracia refém de um grupo que tem clara sua meta: tornar o Brasil um país cristão. E com as atenções voltadas aos patrióticos gramados tudo vira moeda de troca para garantir a elegibilidade e a governabilidade. Recentemente perguntei ao deputado Jean Wyllys sobre seu prognóstico com relação ao assunto e ele foi taxativo ao dizer que é o pior possível. Ano que vem será um ano decisivo para o futuro do país em longo prazo, se iremos reafirmar o desejo de uma sociedade livre ou se iremos entregar o poder a aiatolás tropicais envoltos em casos policiais que vão de corrupção até estupro e para os quais não há ano novo, pois só há um conveniente retrocesso.
A República Cristã do Brasil está encaminhada e com ela o fim das liberdades individuais e, fatalmente, da luta contra a Aids nos moldes que a conhecemos. Sob o manto sagrado da Copa e a unção das eleições majoritárias, o povo brasileiro se vê entre a cruz e a caldeirinha, onde a ameaça vai além de se perder mais de 30 anos de conhecimento sobre a epidemia. É a de ver o fim de mais um tênue lapso de democracia na conturbada história política brasileira.
Deus nos livre!
Beto Volpe é ativista e um dos fundadores da ONG Hipupiara, de São Vicente-SP.
Beto
ResponderExcluirComo sempre, lúcido, consistente e cortante! Direto ao ponto.
Adoraria não ter que te dar os parabéns... aliás, adoraria que vc não precisasse fazer essa previsão.
Beijos
Marta Gil