Pessoal, compartilho com vocês uma nova pérola de Eliane Brum, jornalista a quem admiro um bocado. Lembrei do filme 'De quem é a vida, afinal?' com o sempre brilhante Richard Dreyffus vivendo um bem sucedido escultor que tinha em sua mulher bailarina sua musa inspiradora. Ate que um caminhão atravessa o sinal fechado e o conversível dele vai parar lá embaixo. Sem movimentos da cintura para baixo e necessitando de vários aparelhos para se manter vivo, por conta dos danos internos do acidente, o que o obrigava a viver no hospital imóvel e completamente lúcido. A piração vai num crescendo até que ele contrata um advogado para conseguir um habeas corpus para que ele pudesse sair do hospital e morrer em paz em sua casa. Recomento fortemente. Assim como o texto a seguir. Boa leitura.
Beto Volpe
Descrição da imagem: desenho de mulher que tem a pele em delicado lilás, cabelos em um tom mais escuro, olhos fechados e boca semi aberta, deitada envolta em branco com flores rosas à sua volta e uma em suas mãos entrelaçadas sobre o peito. Das nuvens verdes desce uma mão que parece um acolhimento.
A resolução do Conselho Federal de Medicina nos devolve uma decisão que nunca poderia ter deixado de ser nossa: a escolha de como viver o fim da nossa vida. Como nos alienamos tanto a ponto de permitirmos que chegasse a esse ponto?
É um avanço profundo a resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM),
divulgada na semana que passou, que devolve ao paciente a decisão de
escolher como quer viver o fim da sua vida. Para relembrar: quem estiver
com uma doença crônica ou degenerativa pode escolher se quer ter sua
vida prolongada, à custa do que tem sido chamado de “tratamentos
fúteis”, ou quer que respeitem seu tempo de morrer, beneficiado pelos
“cuidados paliativos”. Tratamentos fúteis são todos aqueles que apenas
adiarão a morte, mas sem dar qualidade para a vida – aumentando e
estendendo o sofrimento. Procedimentos como submeter alguém a uma
cirurgia quando já não há como curar a doença, ressuscitar quem está em
estado terminal e teve parada cardíaca, ligar alguém a aparelhos quando
tudo o que se conseguirá é uma existência vegetativa. Cuidados
paliativos são tanto físicos quanto psíquicos e envolvem não só médicos,
mas uma equipe multidisciplinar. Os profissionais estão lá para
amenizar a dor, mas sem espichar nem abreviar a vida. A ideia é
respeitar o tempo de morrer e usar o conhecimento científico e também de
outras áreas para que se possa viver da melhor maneira possível até o
fim. A qualquer momento, qualquer um de nós pode escrever e até
registrar em cartório um documento, que pode ser chamado de “testamento
vital” ou de “diretiva antecipada de vontade”, no qual determinamos o
que permitimos – e o que não permitimos – no caso de sermos levados a um
hospital ou precisarmos de cuidados médicos.
Passei a preparar meu testamento vital desde que acompanhei as duas
grandes possibilidades do fim de uma vida, anos atrás, quando ela se dá
no palco de um hospital. E percebi que, para mim, uma amante do cinema e
da literatura de terror nas obras de ficção, não haveria terror maior
na vida real do que morrer numa UTI, amarrada a fios, entubada e
sozinha. Não mais uma mulher, uma vida em curso, mas um objeto de
intervenção médica. Quero morrer sem dor física, ou pelo menos com o
mínimo de dor possível, de preferência na minha casa, rodeada por
aqueles que eu amo. E espero conseguir viver da melhor forma possível
até o fim – o que inclui viver a minha morte com dignidade.
Se a resolução do Conselho Federal de Medicina (leia aqui)
é uma boa notícia, vale a pena pensar também sobre o que ela nos diz
para além do texto. Uma resolução do CFM não é uma lei, mas uma
regulamentação da prática médica feita pelo órgão de classe, responsável
por fiscalizar e normatizar o exercício da medicina no país. É
importante, sem dúvida que é, mas há muito ainda a lutar para que
recuperemos nosso direito de escolha. E podemos começar com a seguinte
questão: em que momento delegamos aos médicos a decisão sobre o nosso
morrer? Que é, em última instância, uma decisão sobre o nosso viver?
Dando alguns passos para trás, para enxergarmos o quadro maior,
poderíamos pensar no quanto é curioso ser preciso uma resolução do CFM
para dizer que é aquele que vive e aquele que morre quem tem o direito
de escolher sobre a sua vida e a sua morte. Como alguém, nós ou os
médicos, fomos capazes de pensar que essa decisão pudesse pertencer a
outra pessoa? A que ponto chegamos para que seja preciso que os médicos
nos devolvam algo que sempre foi nosso? Como foi que nos alienamos do
processo da vida, tanto que aceitamos ser transformados em sujeitos
passivos de intervenção e de decisão médica num momento tão crucial de
nossa existência?
O fato é que, desde o século XX, a morte tornou-se marginal na nossa
sociedade, algo a ser escondido dentro dos hospitais, em ambiente
asséptico. E o morrer tornou-se um ato quase obsceno, que nos lembra de
nossos limites num momento histórico obcecado pela juventude e pela
potência. Nossa crescente impossibilidade de lidar com a certeza da
morte produziu pelo menos duas distorções: médicos que abusam do poder e
extrapolam limites e pessoas infantilizadas no momento de tomar uma das
decisões mais importantes da vida.
Reparem que escolho a palavra “pessoas” – e não “pacientes”, nosso nome
a partir do momento em que entramos num hospital, clínica ou
consultório médico. Como pessoas, temos uma história, um percurso, uma
teia de sentidos. Como pacientes, como a etimologia da palavra nos
prova, tanto quanto a prática cotidiana, somos esvaziados de nossos
sentidos e de nossa história para nos tornarmos um sujeito passivo. A
palavra “paciente” vem do latim patientia, que significa “virtude que
consiste em suportar os sofrimentos sem queixa”.
Somos “pacientes” com relação a um outro, que tem poder sobre nós. E
não é obra do acaso que, tanto na posição de doentes quanto na de
velhos, médicos, enfermeiros, auxiliares de enfermagem, assistentes
sociais, fisioterapeutas etc seguidamente nos tratam por diminutivos,
como se fôssemos crianças pequenas. É difícil quem não tenha vivido ou
testemunhado esse tratamento num hospital, clínica ou consultório.
Parece apenas trivial, alguns consideram até carinhoso, outros vagamente
irritante, mas a escolha das palavras desvela nosso lugar – e também um
processo histórico e um embate no campo da ética.
Na prática, a relação com a doença e com a morte é vivida por boa parte
dos médicos, acredito que a maioria, como uma guerra. Perder um
“paciente” é decodificado como derrota. Logo, o médico passa a acreditar
que tudo é permitido para prolongar a vida e seguir no combate. Nessa
lógica, pessoas além da possibilidade de cura têm sido submetidas a
tratamentos invasivos e dolorosos que apenas encolhem a qualidade dos
seus dias. Muitas delas são impedidas de viver o fim da sua vida da
melhor forma que lhes é possível, perto das pessoas que fazem parte da
sua história e dos objetos que a contam. E gente demais tem morrido
sozinha e aterrorizada numa UTI.
Se o médico vê a si mesmo como um comandante em armadura branca, é ele
quem tomará as decisões. De um “paciente”, como de um soldado, espera-se
apenas que colabore, cumpra ordens. O bom “paciente” é aquele que
aceita de bom grado as determinações médicas, mantendo-se no seu lugar
de passividade diante daquele que detém o poder e sabe o que é melhor
para ele – e qual é a melhor estratégia para vencer cada combate. Recuar
parece ser mais difícil para alguns médicos do que foi para muitos dos
grandes generais da História.
Mas o médico é apenas um dos protagonistas desse enredo – não o único.
Tornou-se o que é não apenas porque o poder é tremendamente sedutor, mas
porque permitimos que exerça esse poder. Como todos nós, os
profissionais da saúde fazem parte dessa sociedade e desse momento
histórico, no qual o corpo de uma pessoa doente é visto como um campo de
batalha. Parte de nós espera de um médico que, diante da nossa
fragilidade, diga: “Não se preocupe, vamos lutar com todas as armas da
medicina”. Em troca, ele só espera nossa completa obediência. Muitos não
têm sequer paciência para explicar a estratégia e os danos colaterais
do tratamento – e há aqueles que se ofendem quando questionados. Do
mesmo modo que não há enterro de pessoas que viveram uma doença
prolongada, como câncer, em que familiares e amigos não comentem diante
do caixão: “Foi um guerreiro. Lutou até o fim”! A escolha das palavras
é, mais uma vez, reveladora. Todos nós colaboramos e cumprimos nosso
papel nesse jogo de ilusões. Assim, todos somos responsáveis pelos
abusos que aí estão.
Desde os anos 60 do século passado vozes dissonantes começaram a ser
ouvidas, questionando a mentalidade reinante. Afinal, muitas vezes a
maior coragem é reconhecer os limites e parar de lutar. Ou, dito de
outra maneira, aceitar o fim da vida e tentar viver da melhor maneira
possível os dias que restam – o que certamente não inclui tratamentos
dolorosos e invasivos, ampliados pelo avanço tecnológico. Se você tem
pouco tempo de vida, vai querer gastá-lo em hospitais, amarrado a fios
ou fazendo exames e cirurgias, com estranhos que o tocam com luvas? É
possível que não.
Já escrevi esta frase aqui, mas vou repeti-la mais uma vez: “A morte
não é o contrário da vida, a morte é o contrário do nascimento. A vida
não tem contrários”. Ou seja: morrer é parte da vida, não seu oposto.
Precisamos aprender a viver também a nossa morte, por mais difícil que
seja – e, com certeza, é muito. De certo modo, o morrer será a última
grande novidade na vida de todos. Querendo ou não.
Como a morte por doença e por velhice, a morte da maioria, tem sido
calada entre nós, temos perdido uma grande chance de pensar sobre a
vida. E como tudo que é silenciado e reprimido, também a morte tornou-se
apenas horror. Assim, nada mais prático do que delegar a tarefa de
decidir sobre esse momento crucial ao médico. O medo é tanto que
preferimos abdicar da nossa autonomia e nos colocar na mão de alguém que
espera ser chamado de “doutor” – outra palavra que no Brasil diz muito
sobre as relações de classe e de poder, tanto nas leis quanto na
medicina. Diz tanto sobre o lugar do médico quanto sobre o nosso lugar
diante dele. Se os médicos acreditam ter controle absoluto sobre as
decisões da nossa vida e da nossa morte, a ponto de fazerem cirurgias em
nosso corpo até mesmo contra a nossa vontade, é só porque podem contar
com a nossa cumplicidade. E a tem porque nos é conveniente.
O que o Conselho Federal de Medicina está dizendo aos seus é o
seguinte: “Vocês não têm mais o aval da instituição para abusar do seu
poder”. Decisões tomadas à revelia do “paciente” não poderão mais ser
ocultas atrás da obrigação de empreender todos os esforços para
supostamente salvar uma vida. Nesses casos, sabe-se que não há como
salvar uma vida, só há como espichá-la a um preço altíssimo – o
sequestro da qualidade dos dias que restam. O CFM está lembrando também
algo que parece ter sido esquecido: nem sempre um médico pode curar, mas
sempre pode cuidar.
Quem decide sobre como viver e como morrer é quem vive e quem morre. E é
triste que seja preciso o CFM nos dizer isso, quando cada um deveria
ter dito a cada médico que tenha tentado tomar uma decisão em seu lugar.
Ao médico cabe esclarecer todas as alternativas, da forma mais clara e
didática possível. À família cabe compartilhar, trocar ideias e dar
apoio à decisão tomada. Mas a escolha sobre como viver o fim da vida é
pessoal e intransferível. Não é do médico e também não é da família, que
muitas vezes toma para si o poder de decidir sobre a vida de quem
morre, com a justificativa sempre bem vista socialmente do amor
extremado.
Se o CFM deu uma boa resposta ao debate travado na sociedade sobre o
viver da morte, na prática essa realidade só vai mudar se mudarmos nós.
Quem levou essa discussão adiante, desde a segunda metade do século
passado, foram os movimentos de vanguarda, liderados por profissionais
da bioética e dos cuidados paliativos. Mas a vida muda de fato na
prática cotidiana. Muda quando mudar nosso comportamento dentro de
consultórios, clínicas e hospitais. Muda quando a morte voltar a ter seu
lugar central na vida – abandonando a posição marginal na qual a
relegamos.
Não se iluda. Fugindo ou não dela, é a morte que dá sentido à vida. É
diante da possibilidade do fim que criamos uma existência que valha a
pena. Sem ela, deixaríamos tudo para um amanhã que nunca chegaria,
presos a um presente tão repetitivo quanto infinito. Calar a morte é uma
burrice, já que inútil, mas é principalmente a perda de uma grande
oportunidade para viver uma vida mais viva.
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Encerro esta coluna com a sugestão de uma aventura pelo universo da
morte, através do cinema, da literatura e da reportagem. Cada um vive o
seu percurso a partir de suas próprias experiências, mas duvido que
alguém saia dele menor do que entrou. As obras indicadas a seguir fazem
parte de minha trajetória para compreender essa questão – e também deixo
aqui alguns dos meus trabalhos sobre o tema. Há muito mais do que isso,
escolho apenas o que me pareceu mais interessante. Seria ótimo se cada
leitor pudesse acrescentar, nos comentários desta coluna, suas próprias
descobertas, compartilhando aquilo que o ajudou na sua busca.
Livros:
- O homem perante a morte, de Philippe Ariès (obra em dois
volumes, na qual o historiador francês mostra como a morte foi vista ao
longo da História – é um livro fascinante e até hoje o que existe de
mais completo sobre o tema);
- A morte de Ivan Ilitch, de Leon Tolstói (uma pequena obra-prima da literatura russa);
- O ano do pensamento mágico e Noites Azuis, dois
livros de Joan Didion (a escritora americana perdeu o marido e depois a
filha, o que a levou a uma longa reflexão sobre a fragilidade, a velhice
e a morte – escrevi sobre o último aqui).
Filmes:
- Hanami, cerejeiras em flor, de Doris Dorrie (este é o meu
filme preferido sobre a vida e sobre a morte e um dos melhores filmes
que vi na vida – totalmente delicado e imperdível);
- Poesia, de Lee Chang-Dong (escrevi sobre esse filme aqui);
- A Partida, de Yojiro Takita (o olhar da sociedade sobre as pessoas que lidam com a morte);
- Ensina-me a viver, de Hal Ashby (um diálogo criativo e revelador entre o jovem Harold e a velha Maude).
- Mar adentro, de Alejandro Amenabar (sobre um homem lutando pela eutanásia, um direito que ainda não temos).
Algumas reportagens que fiz sobre o tema (basta clicar para lê-las):
- A enfermaria entre a vida e a morte, A mulher que alimentava, Minha vida com Alice
(nesta reportagem, dividida em três textos, discuto nosso olhar sobre a
morte e conto o cotidiano de uma enfermaria de cuidados paliativos,
acompanho os últimos 115 dias da vida de uma mulher com um câncer além
da possibilidade de cura e, por fim, reflito sobre como foi viver essa
experiência);
- O filho possível (aqui, acompanho uma unidade neonatal de cuidados paliativos);
- Testamento Vital
(nesta coluna, abordo o início da discussão dessa resolução do CFM e
entrevisto José Eduardo de Siqueira, um médico humanista que tem muito a
nos dizer);
- Profissão Repórter (neste programa de TV, Thaís Itaqui, Caco Barcellos e eu contamos a rotina de uma enfermaria de cuidados paliativos).
Boa jornada!
Eliane Brum, jornalista, escritora e documentarista. Ganhou mais de 40
prêmios nacionais e internacionais de reportagem. É autora de um romance
- Uma Duas (LeYa) - e de três livros de reportagem: Coluna Prestes – O Avesso da Lenda (Artes e Ofícios), A Vida Que Ninguém Vê (Arquipélago Editorial, Prêmio Jabuti 2007) e O Olho da Rua (Globo). E codiretora de dois documentários: Uma História Severina e Gretchen Filme Estrada. elianebrum@uol.com.br
@brumelianebrum
@brumelianebrum
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