Pessoal, Eliane Brum é uma mulher que me tira o fôlego.
Beto Volpe
Descrição da imagem: em preto sobre branco, a figura feminina da Justiça empunhando uma espada com a mão direita e a balança com a esquerda, sobre uma coroa de louros.
Por que o uso da palavra “doutor” antes do nome de advogados e médicos ainda persiste entre nós? E o que ela revela do Brasil?
Sei muito bem que a língua, como coisa viva que é, só muda quando mudam
as pessoas, as relações entre elas e a forma como lidam com o mundo.
Poucas expressões humanas são tão avessas a imposições por decreto como a
língua. Tão indomável que até mesmo nós, mais vezes do que gostaríamos,
acabamos deixando escapar palavras que faríamos de tudo para recolher
no segundo seguinte. E talvez mais vezes ainda pretendêssemos usar
determinado sujeito, verbo, substantivo ou adjetivo e usamos outro bem
diferente, que revela muito mais de nossas intenções e sentimentos do
que desejaríamos. Afinal, a psicanálise foi construída com os tijolos de
nossos atos falhos. Exerço, porém, um pequeno ato quixotesco no meu uso
pessoal da língua: esforço-me para jamais usar a palavra “doutor” antes
do nome de um médico ou de um advogado.
Travo minha pequena batalha com a consciência de que a língua nada tem
de inocente. Se usamos as palavras para embates profundos no campo das
ideias, é também na própria escolha delas, no corpo das palavras em si,
que se expressam relações de poder, de abuso e de submissão. Cada
vocábulo de um idioma carrega uma teia de sentidos que vai se alterando
ao longo da História, alterando-se no próprio fazer-se do homem na
História. E, no meu modo de ver o mundo, “doutor” é uma praga
persistente que fala muito sobre o Brasil. Como toda palavra, algumas
mais do que outras, “doutor” desvela muito do que somos – e é preciso
estranhá-lo para conseguirmos escutar o que diz.
Assim, minha recusa ao “doutor” é um ato político. Um ato de
resistência cotidiana, exercido de forma solitária na esperança de que
um dia os bons dicionários digam algo assim, ao final das várias
acepções do verbete “doutor”: “arcaísmo: no passado, era usado pelos
mais pobres para tratar os mais ricos e também para marcar a
superioridade de médicos e advogados, mas, com a queda da desigualdade
socioeconômica e a ampliação dos direitos do cidadão, essa acepção caiu
em desuso”.
Em minhas aspirações, o sentido da palavra perderia sua força não por
proibição, o que seria nada além de um ato tão inútil como arbitrário,
na qual às vezes resvalam alguns legisladores, mas porque o Brasil
mudou. A língua, obviamente, só muda quando muda a complexa realidade
que ela expressa. Só muda quando mudamos nós.
Historicamente, o “doutor” se entranhou na sociedade brasileira como
uma forma de tratar os superiores na hierarquia socioeconômica – e
também como expressão de racismo. Ou como a forma de os mais pobres
tratarem os mais ricos, de os que não puderam estudar tratarem os que
puderam, dos que nunca tiveram privilégios tratarem aqueles que sempre
os tiveram. O “doutor” não se estabeleceu na língua portuguesa como uma
palavra inocente, mas como um fosso, ao expressar no idioma uma
diferença vivida na concretude do cotidiano que deveria ter nos
envergonhado desde sempre.
Lembro-me de, em 1999, entrevistar Adail José da Silva, um carregador
de malas do Aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre, para a coluna
semanal de reportagem que eu mantinha aos sábados no jornal Zero Hora,
intitulada “A Vida Que Ninguém Vê”. Um trecho de nosso diálogo foi
este:
- E como os fregueses o chamam?
- Os doutor me chamam assim, ó: “Ô, negão!” Eu acho até que é carinhoso.
- Os doutor me chamam assim, ó: “Ô, negão!” Eu acho até que é carinhoso.
- O senhor chama eles de doutor?
- Pra mim todo mundo é doutor. Pisou no aeroporto é doutor. É ó, doutor, como vai, doutor, é pra já, doutor....
- Pra mim todo mundo é doutor. Pisou no aeroporto é doutor. É ó, doutor, como vai, doutor, é pra já, doutor....
- É esse o segredo do serviço?
- Tem que ter humildade. Não adianta ser arrogante. Porque, se eu fosse um cara importante, não ia tá carregando a mala dos outros, né? Sou pé de chinelo. Então, tenho que me botar no meu lugar.
- Tem que ter humildade. Não adianta ser arrogante. Porque, se eu fosse um cara importante, não ia tá carregando a mala dos outros, né? Sou pé de chinelo. Então, tenho que me botar no meu lugar.
A forma como Adail via o mundo e o seu lugar no mundo – a partir da
forma como os outros viam tanto ele quanto seu lugar no mundo –
contam-nos séculos de História do Brasil. Penso, porém, que temos
avançado nas últimas décadas – e especialmente nessa última. O “doutor”
usado pelo porteiro para tratar o condômino, pela empregada doméstica
para tratar o patrão, pelo engraxate para tratar o cliente, pelo negro
para tratar o branco não desapareceu – mas pelo menos está arrefecendo.
Se alguém, especialmente nas grandes cidades, chamar hoje o outro de
“doutor”, é legítimo desconfiar de que o interlocutor está brincando ou
ironizando, porque parte das pessoas já tem noção da camada de ridículo
que a forma de tratamento adquiriu ao longo dos anos. Essa mudança, é
importante assinalar, reflete também a mudança de um país no qual o
presidente mais popular da história recente é chamado pelo nome/apelido.
Essa contribuição – mais sutil, mais subjetiva, mais simbólica – que se
dá explicitamente pelo nome, contida na eleição de Lula, ainda merece
um olhar mais atento, independentemente das críticas que se possa fazer
ao ex-presidente e seu legado.
Se o “doutor” genérico, usado para tratar os mais ricos, está perdendo
seu prazo de validade, o “doutor” que anuncia médicos e advogados parece
se manter tão vigoroso e atual quanto sempre. Por quê? Com tantas
mudanças na sociedade brasileira, refletidas também no cinema e na
literatura, não era de se esperar um declínio também deste doutor?
Ao pesquisar o uso do “doutor” para escrever esta coluna, deparei-me
com artigos de advogados defendendo que, pelo menos com relação à sua
própria categoria, o uso do “doutor” seguia legítimo e referendado na
lei e na tradição. O principal argumento apresentado para defender essa
tese estaria num alvará régio no qual D. Maria, de Portugal, mais
conhecida como “a louca”, teria outorgado o título de “doutor” aos
advogados. Mais tarde, em 1827, o título de “doutor” teria sido
assegurado aos bacharéis de Direito por um decreto de Dom Pedro I, ao
criar os primeiros cursos de Ciências Jurídicas e Sociais no
Brasil. Como o decreto imperial jamais teria sido revogado, ser “doutor”
seria parte do “direito” dos advogados. E o título teria sido
“naturalmente” estendido para os médicos em décadas posteriores.
Há, porém, controvérsias. Em consulta à própria fonte, o artigo 9 do
decreto de D. Pedro I diz o seguinte: “Os que frequentarem os cinco anos
de qualquer dos Cursos, com aprovação, conseguirão o grau de Bacharéis
formados. Haverá também o grau de Doutor, que será conferido àqueles que
se habilitarem com os requisitos que se especificarem nos Estatutos,
que devem formar-se, e só os que o obtiverem, poderão ser escolhidos
para Lentes”. Tomei a liberdade de atualizar a ortografia, mas o texto
original pode ser conferido aqui. “Lente” seria o equivalente hoje à livre-docente.
Mesmo que Dom Pedro I tivesse concedido a bacharéis de Direito o título
de “doutor”, o que me causa espanto é o mesmo que, para alguns membros
do Direito, garantiria a legitimidade do título: como é que um decreto
do Império sobreviveria não só à própria queda do próprio, mas também a
tudo o que veio depois?
O fato é que o título de “doutor”, com ou sem decreto imperial,
permanece em vigor na vida do país. Existe não por decreto, mas
enraizado na vida vivida, o que torna tudo mais sério. A resposta para a
atualidade do “doutor” pode estar na evidência de que, se a sociedade
brasileira mudou bastante, também mudou pouco. A resposta pode ser
encontrada na enorme desigualdade que persiste até hoje. E na forma como
essas relações desiguais moldam a vida cotidiana.
É no dia a dia das delegacias de polícia, dos corredores do Fórum, dos
pequenos julgamentos que o “doutor” se impõe com todo o seu poder sobre o
cidadão “comum”. Como repórter, assisti à humilhação e ao desamparo
tanto das vítimas quanto dos suspeitos mais pobres à mercê desses
doutores, no qual o título era uma expressão importante da desigualdade
no acesso à lei. No início, ficava estarrecida com o tratamento usado
por delegados, advogados, promotores e juízes, falando de si e entre si
como “doutor fulano” e “doutor beltrano”. Será que não percebem o quanto
se tornam patéticos ao fazer isso?, pensava. Aos poucos, percebi a
minha ingenuidade. O “doutor”, nesses espaços, tinha uma função
fundamental: a de garantir o reconhecimento entre os pares e assegurar a
submissão daqueles que precisavam da Justiça e rapidamente compreendiam
que a Justiça ali era encarnada e, mais do que isso, era pessoal, no
amplo sentido do termo.
No caso dos médicos, a atualidade e a persistência do título de
“doutor” precisam ser compreendidas no contexto de uma sociedade
patologizada, na qual as pessoas se definem em grande parte por seu
diagnóstico ou por suas patologias. Hoje, são os médicos que dizem o que
cada um de nós é: depressivo, hiperativo, bipolar, obeso, anoréxico,
bulímico, cardíaco, impotente, etc. Do mesmo modo, numa época histórica
em que juventude e potência se tornaram valores – e é o corpo que
expressa ambas – faz todo sentido que o poder médico seja enorme. É o
médico, como manipulador das drogas legais e das intervenções
cirúrgicas, que supostamente pode ampliar tanto potência quanto
juventude. E, de novo supostamente, deter o controle sobre a longevidade
e a morte. A ponto de alguns profissionais terem começado a defender
que a velhice é uma “doença” que poderá ser eliminada com o avanço
tecnológico.
O “doutor” médico e o “doutor” advogado, juiz, promotor, delegado têm
cada um suas causas e particularidades na história das mentalidades e
dos costumes. Em comum, o doutor médico e o doutor advogado, juiz,
promotor, delegado têm algo significativo: a autoridade sobre os corpos.
Um pela lei, o outro pela medicina, eles normatizam a vida de todos os
outros. Não apenas como representantes de um poder que pertence à
instituição e não a eles, mas que a transcende para encarnar na própria
pessoa que usa o título.
Se olharmos a partir das relações de mercado e de consumo, a medicina e
o direito são os únicos espaços em que o cliente, ao entrar pela porta
do escritório ou do consultório, em geral já está automaticamente numa
posição de submissão. Em ambos os casos, o cliente não tem razão, nem
sabe o que é melhor para ele. Seja como vítima de uma violação da lei ou
como autor de uma violação da lei, o cliente é sujeito passivo diante
do advogado, promotor, juiz, delegado. E, como “paciente” diante do
médico, como abordei na coluna anterior, deixa de ser pessoa para tornar-se objeto de intervenção.
Num país no qual o acesso à Justiça e o acesso à Saúde são deficientes,
como o Brasil, é previsível que tanto o título de “doutor” permaneça
atual e vigoroso quanto o que ele representa também como viés de classe.
Apesar dos avanços e da própria Constituição, tanto o acesso à Justiça
quanto o acesso à Saúde permanecem, na prática, como privilégios dos
mais ricos. As fragilidades do SUS, de um lado, e o número insuficiente
de defensores públicos de outro são expressões dessa desigualdade.
Quando o direito de acesso tanto a um quanto a outro não é assegurado, a
situação de desamparo se estabelece, assim como a subordinação do
cidadão àquele que pode garantir – ou retirar – tanto um quanto outro no
cotidiano. Sem contar que a cidadania ainda é um conceito mais teórico
do que concreto na vida brasileira.
Infelizmente, a maioria dos “doutores” médicos e dos “doutores”
advogados, juízes, promotores, delegados etc estimulam e até exigem o
título no dia a dia. E talvez o exemplo público mais contundente seja o
do juiz de Niterói (RJ) que, em 2004, entrou na Justiça para exigir que
os empregados do condomínio onde vivia o chamassem de “doutor”. Como
consta nos autos, diante da sua exigência, o zelador retrucava: “Fala
sério....” Não conheço em profundidade os fatos que motivaram as
desavenças no condomínio – mas é muito significativo que, como solução, o
juiz tenha buscado a Justiça para exigir um tratamento que começava a
lhe faltar no território da vida cotidiana.
É importante reconhecer que há uma pequena parcela de médicos e
advogados, juízes, promotores, delegados etc que tem se esforçado para
eliminar essa distorção. Estes tratam de avisar logo que devem ser
chamados pelo nome. Ou por senhor ou senhora, caso o interlocutor
prefira a formalidade – ou o contexto a exija. Sabem que essa mudança
tem grande força simbólica na luta por um país mais igualitário e pela
ampliação da cidadania e dos direitos. A estes, meu respeito.
Resta ainda o “doutor” como título acadêmico, conquistado por aqueles
que fizeram doutorado nas mais diversas áreas. No Brasil, em geral isso
significa, entre o mestrado e o doutorado, cerca de seis anos de estudo
além da graduação. Para se doutorar, é preciso escrever uma tese e
defendê-la diante de uma banca. Neste caso, o título é – ou deveria ser –
resultado de muito estudo e da produção de conhecimento em sua área de
atuação. É também requisito para uma carreira acadêmica bem sucedida –
e, em muitas universidades, uma exigência para se candidatar ao cargo de
professor.
Em geral, o título só é citado nas comunicações por escrito no âmbito
acadêmico e nos órgãos de financiamento de pesquisas, no currículo e na
publicação de artigos em revistas científicas e/ou especializadas. Em
geral, nenhum destes doutores é assim chamado na vida cotidiana, seja na
sala de aula ou na padaria. E, pelo menos os que eu conheço, caso o
fossem, oscilariam entre o completo constrangimento e um riso
descontrolado. Não são estes, com certeza, os doutores que alimentam
também na expressão simbólica a abissal desigualdade da sociedade
brasileira.
Estou bem longe de esgotar o assunto aqui nesta coluna. Faço apenas uma
provocação para que, pelo menos, comecemos a estranhar o que parece
soar tão natural, eterno e imutável – mas é resultado do processo
histórico e de nossa atuação nele. Estranhar é o verbo que precede o
gesto de mudança. Infelizmente, suspeito de que “doutor fulano” e
“doutor beltrano” terão ainda uma longa vida entre nós. Quando partirem
desta para o nunca mais, será demasiado tarde. Porque já é demasiado
tarde – sempre foi.
Eliane Brum, jornalista, escritora e documentarista. Ganhou mais de 40
prêmios nacionais e internacionais de reportagem. É autora de um romance
- Uma Duas (LeYa) - e de três livros de reportagem: Coluna Prestes – O Avesso da Lenda (Artes e Ofícios), A Vida Que Ninguém Vê (Arquipélago Editorial, Prêmio Jabuti 2007) e O Olho da Rua (Globo). E codiretora de dois documentários: Uma História Severina e Gretchen Filme Estrada. elianebrum@uol.com.br
@brumelianebrum
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