Descrição da imagem: os anfitriões da Ilha da Fantasia, senhor Roarke e Tattoo, trajando fraques brancos e grandes colares de flores tropicais. Eles posam em pé para foto em um gramado, alheios às dificuldades do mundo real, tendo ao fundo um tranquilo rio, uma exuberante natureza e uma bela nativa.
Após dormir por quase um dia inteiro, coisa que não acontecia desde que tomei meu último ‘Boa noite,
Cinderela’, a cabeça está mais firme sobre o pescoço e os pensamentos mais
claros sobre o que rolou no IX Congresso Brasileiro de Prevenção das DST/AIDS, realizado no finzinho de agosto no Centro de Eventos do Anhembi, São Paulo. Quatro dias de muito vai e vem naquele gigantismo, de muito fala e escuta em todos os sotaques e idiomas que vieram imediatamente após a realização do 1º Seminário Nacional de Eventos Adversos de Medicamentos em AIDS e Hepatites Virais, do qual fui coordenador técnico e, claro, enlouqueci por cinco dias envolto por assuntos leves como envelhecimento precoce, cânceres, danos ósseos, adesão em tempos de efeitos colaterais, redução da expectativa de vida... Mas isso é outro artigo, em breve no blog mais próximo de seu servidor. O que importa é que ele municiou muitas discussões no evento nacional.
Logo de cara,
o fato de não termos NENHUM titular nas representações governamentais da
mesa de abertura mostra que estamos mal de IBOPE, atrás até de Levy Fidelix e
seu aerotrem. Até mesmo o Dr. Pedro Chequer, diretor da UNAIDS no Brasil, enviou outra pessoa em
seu nome, talvez por não querer repetir para seus amigos gestores, face a
face, o que declarou a plenos pulmões em Washington... Quem sabe? Só sei que se
ele pronunciasse aqui sua preocupada fala sobre o retrocesso das políticas
públicas em AIDS no Brasil, teria sido de grande valia para a revisão de rumos
que tanto queremos. Revisão que deveria iniciar com a exclusão da palavra CRÔNICA da nomenclatura em AIDS. Esse termo é extremamente nocivo para o controle da epidemia, porque traz a falsa sensação de que tudo está muito bem, obrigado. Daí até tirar a camisinha de cena e realocar as verbas da AIDS para outras 'prioridades' é um tirinho de espingarda, como se diz no interior de SP.
A aclamação da platéia às representações da sociedade civil na mesma mesa demonstrou claramente o descontentamento generalizado. A manifestação ocorrida durante a fala do representante do Ministro da Saúde, onde ativistas interromperam sua fala e deram, literalmente, um cartão vermelho para a atuação governamental, demonstraram claramente o desejo de mudanças na estratégia brasileira, que um dia foi referência positiva e hoje passa a ser uma grande preocupação para muita gente. E que se volte a encarar a AIDS com humildade e não com a arrogância que estamos nos acostumando a ver brotar dos governos e de cientistas que entendem muito bem sua área, mas que desconhecem qualquer aspecto que não envolva moléculas.
Não havia nem metade dos
participantes de Brasília, sede da edição anterior.. Muitas salas com pouca presença e poucas
superlotadas. Achei bem legal a integração entre os congressos brasileiros e os
fóruns latinos/caribenhos, vi muita coisa interessante em outros países que têm
sérios problemas de acesso a medicamentos e de violação a direitos humanos.
Eles podem ser um tipo de vírus que infeccione nosso movimento com a urgência
de outrora. Para que alguns deixem de achar que manifestações como a ocorrida na abertura do evento em 2010 sejam interpretadas como falta de educação. Para mim
falta de educação é o gestor não ouvir atentamente o que diz a sociedade civil
e as pessoas com HIV e apresentar a situação brasileira como a Ilha da
Fantasia. Tive a grata oportunidade de travar rápidos duelos ideológicos com
alguns ativistas e gestores que pensam assim. A propósito, impressiona a
semelhança no discurso de ambos.....
Enfim, como disse
a vários gestores, inclusive o organizador do evento, saí do Congresso um tanto mais pessimista do que entrei. A
descentralização da assistência de pessoas vivendo com HIV em situação de 'baixa complexidade' para a rede básica é dada como favas contadas. Isso representaria o fim da equipe multidisciplinar preconizada internacionalmente e acessível na maioria dos SAEs e Centros de Referência, o que poderia facilitar a ocorrência de agravos. Ou alguém imagina que o SUS irá deixar de frequentar as páginas policiais só porque irá receber os pacientes com HIV? Deixarão de existir as filas da madrugada por uma senha, sem sequer saber se conseguirá consulta?
Mas
há uma luz no fim do túnel. Na mesa 'Descentralização e estruturação da rede
básica' ficou claro que não é o momento de se efetivar essa lógica que é muito
boa, mas necessita de muita qualificação antes disso. Após explanação de Dra.
Alzira Guimarães do CONASS - Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Saúde e da técnica Cyntia do Ministério da Saúde, quando ambas também
declararam sua residência na Ilha da Fantasia, a senhora Tânia Clemente da Secretaria de Saúde de
Bragança Paulista, piloto nesse processo, abriu sua fala dizendo:
“Desculpe,
doutora Alzira e Cyntia, mas não está acontecendo nada do que vocês estão
pensando.’
E discorreu sobre
os vários entraves, gargalos, dificuldades, obstáculos, etc, etc, etc...
Depois disso veio o senhor Wagner Martins, técnico da Fiocruz que, filosoficamente, disse o mesmo que a
coordenadora de Bragança. Naturalmente que repliquei essa
fala pra todos os técnicos e gestores que vi pela frente e pedi que se reportassem
a Bragança com muita atenção.
Mas, de longe, o
que me marcou positivamente (sem trocadilhos) foi a união das três redes de pessoas vivendo. Juntos, Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV/AIDS, Movimento Nacional das Cidadãs Posithivas e Rede Nacional de Adolescentes e Jovens Vivendo com HIV/AIDS elaboraram e assinaram conjuntamente o Manifesto do Movimento Nacional de Pessoas Vivendo com HIV/AIDS que foi distribuído durante o congresso e decidiram, com o correr do tempo, azeitar as relações, unificar as pautas naquilo que for possível e realizar mais ações conjuntas das três redes, já que o que nos une é muito mais forte que todas nossas diferenças, juntas.
A união das pessoas vivendo é a
maior força que pode reverter o processo de banalização da epidemia de AIDS. Cabe especialmente a nós a tarefa de mostrar que a Ilha da Fantasia não existe. O que existe é um mar de dificuldades causado por uma epidemia que está a anos luz de ser considerada crônica ou sob controle. Doença crônica é aquela sobre a qual conhecemos os mecanismos e temos condições de controlá-los. A AIDS é uma doença recente e com muitos aspectos ainda não compreendidos, o que faz com que seu controle seja uma espécie de Ilha da Fantasia: todo mundo viu na TV, mas não existe na realidade. Se existe algum controle, ele ainda pertence ao próprio vírus.
Enquanto isso, na porta principal do Anhembi, Ricardo Montalbán e seu amigo Tatoo recepcionavam:
'Sejam bem vindos à Ilha da Fantasia.'
'Sejam bem vindos à Ilha da Fantasia.'
Beto Volpe
Adorei sua declaração no Congresso! Ainda bem que existem pessoas como você!!!
ResponderExcluir