Descrição da imagem: mão espalmada pra cima recebendo (ofertando?) várias moedas de diversos valores.
Pessoal, uma vez mais abro espaço no blog para meu amigo de fé e irmão camarada Cláudio Monteiro que desta feita questiona premiações no âmbito do SUS. Boa leitura!
Beto Volpe
Lançado em junho de 2011, a publicação oficial do Ministério da Saúde, Projeto AIDS SUS-2011-2014 (Manual Operacional) apesar de sua importância capital no realinhamento das estratégias de enfrentamento ao HIV, vem passando despercebida – ou talvez esteja sendo convenientemente obscurecida. Ao menos, não é perceptível a repercussão desta junto ao movimento social, assim como não se percebe, por parte dos gestores, o empenho condizente a sua importância, quanto à divulgação.
Já em seu resumo executivo, o documento se apresenta como tendo “dois objetivos de desenvolvimento: aumentar o acesso aos serviços de prevenção, diagnóstico e tratamento em DST/HIV e aids para grupos vulneráveis e melhorar o desempenho dos programas de DST e aids nos três níveis de governo, por meio da gestão baseada em resultados e melhoria da governança” (grifo nosso). O curioso, para não dizer, o desconcertante, reside no fato de que, entre as estratégias definidas para melhorar o desempenho dos programas de DST e aids (...)e melhoria da governança, consiste no estabelecimento do Sistema de Premiações e Sanções, a incidir sobre as esferas de gestão, referente a utilização dos recursos transferidos pelo Fundo Nacional de Saúde aos Fundos Estaduais e Municipais de Saúde a título de “incentivo” ao cumprimento de metas de enfrentamento ao HIV.
Para que entendamos tal proposição, e principalmente suas profundas implicações, retomemos a História :
O advento, e a conseqüente necessidade de enfrentamento à epidemia de HIV/Aids (através da proposição e execução de políticas publicas especificas), no Brasil, ocorre, em termos cronológicos, concomitantemente ao processo de construção do Sistema Único de Saúde, ou seja o início dos anos 80. A paulatina regionalização e descentralização da gestão das políticas de saúde, e a conseqüente adesão dos municípios ao SUS, uma vez embasada em indicadores epidemiológicos, pôde prever, e, portanto, destinar recursos, às ações de prevenção e assistência em HIV/Aids.
Assim sendo, a crescente magnitude epidemiológica verificada e a conseqüente necessidade de estruturação de serviços de atendimento a portadores, bem como o desenvolvimento de ações de prevenção, motivou o Governo Federal, pelo Ministério da Saúde, a celebrar acordos com o Banco Interamericano Para a Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD), visando a consecução de recurso, destinados a estes fins. A celebração destes, veio possibilitar que estados e municípios com maiores magnitudes epidêmicas viessem a ter acesso aos recursos, através da celebração, por sua vez, de convênios com o Ministério da Saúde. Tais convênios condicionavam-se a elaboração de instrumentos formai de planejamento, denominados Planos Operativos Anuais (POA)
Nesta modalidade de repasse de recursos financeiros (convênio), a prestação de contas do conveniado ao convenente, é realizada de maneira contábil, ou seja, através da apresentação de comprovantes de despesas, não havendo necessariamente parâmetro de avaliação técnica das ações executadas.
Evidencia-se, portanto que, a forma de financiamento inicialmente desenvolvida pelo Ministério da Saúde para ações de prevenção e assistência em DST/Aids, ou seja, os convênios “POA”, consistiram, nos período compreendido entre 1994 e 2002 enquanto em um anacronismo institucional. A modalidade convenial de repasse de recursos financeiros obedece a formas contábeis de prestação de contas legalmente determinadas, hodiernamente dadas pela Lei Federal 8.666/93,,diferenciando-se dos mecanismos de repasses financeiros e de controle social, inerentes ao SUS previstos nas Leis Orgânicas da Saúde, regulamentadas pela Norma Operacional Básica 01/96. Este anacronismo referente ao financiamento das ações de HIV/DST/Aids corrigiu-se pela Portaria MS 2313/02, a qual institui incentivo para Estados, Distrito Federal e Municípios no âmbito do Programa Nacional de HIV/Aids e outras DST, e também pela Portaria MS 2314/02 que aprova a Norma Técnica Incentivo HIV/Aids e outras DST.
Com a habilitação dos municípios os recursos financeiros passam a ser regularmente depositados em conta do Fundo Municipal de Saúde, seguindo assim a lógica dos demais repasses, lato senso, denominados fundo a fundo.
Em agosto de 2004, por meio da Portaria MS 1679/04, o MS definiu as normas relativas ao Sistema de Monitoramento da Política de Incentivo no Âmbito do Programa Nacional de DST e Aids. O monitoramento é realizado (on line, ou de modo convencional), através das informações prestadas unicamente pela esfera de gestão que vem recebendo o recurso. Ou seja, iniciaram-se os repasses a título de incentivo, e somente dezesseis meses após este inicio, buscou-se o estabelecimento de mecanismos mínimos de controle dos repasses verificados, em vistas ao cumprimento ou não, das metas e ações previstas nos planos..
Estudos acadêmicos desenvolvidos por Silva[1], Taglietta[2] e Monteiro[3], entre outros endossados pelos freqüentes relatos de técnicos dos programas municipais de AIDS indicam que a pactuação de metas, através do instrumento formal de pactuação, bem como a aprovação destes por instâncias deliberativas não ofertam garantias de que os gestores e gerentes venham a desencadear as ações previstas ao cumprimento das metas pactuadas, ainda que o repasse de recursos financeiros concernentes a estas esteja assegurado.
Complementarmente, a garantia do cumprimento das metas pactudas passa necessariamente pela revisão do das relações institucionais verificadas entre as áreas da saúde e administrativas dos municípios, ou mesmo entre as áreas programáticas de uma mesma Secretaria Municipal da Saúde. Evidencia-se desta forma que a obstacularização ao cumprimento das metas pactuadas pelos municípios, dada por entraves administrativos dos próprios municípios, pode estar ocorrendo em vários municípios habilitados ao recebimento dos recursos do incentivo. Prova maior deste descumprimento generalizado reside no fato de que, de acordo com informações de técnicos do próprio Departamento Nacional de DST, AIDS e Hepatites Virais, a somatória do montante repassado aos Fundos Municipais de Saúde, de 2003 até o presente, e que se encontram “parados” em contas bancárias simplesmente porque as administrações municipais não sabem utilizar o recurso, ultrapassa a cifra de 55 milhões de reais. E isto num país onde o número de casos novos de infecção pelo HIV, anualmente, ultrapassam a casa dos 35 mil casos.
Paradoxalmente, as ferramentas de reversão deste quadro, já existem, e residem, sobretudo, na própria Portaria MS 1679/04 (em que pese a fragilidade deste instrumento em termos auditoriais), e, principalmente na Portaria MS Nº 399/2006, que define claramente as responsabilidades da União e dos Estados na regulação, controle, avaliação e auditoria, conferindo aos Estados “monitorar e fiscalizar a aplicação dos recursos financeiros transferidos aos fundos municipais” e à União ”monitorar e fiscalizar a aplicação dos recursos financeiros transferidos fundo a fundo e por convênio aos fundos de saúde dos estados, do Distrito Federal e dos municípios”. A observação e cumprimento desses dispositivos, logicamente, dependem muito mais da decisão política de cada esfera de gestão em fazer valê-los, do que o mecanismo em sí.
Mas, seja como for, os mecanismos de controle, já existem. Vai daí a necessidade de externarmos nossa mais profunda estranheza quanto ao Sistema de Premiações e Sanções atualmente proposto pelo Departamento Nacional de DST, AIDS e Hepatites Virais.
Mas no que consiste este “sistema”?
De acordo com o texto do documento Projeto AIDS SUS-2011-2014 (Manual Operacional : “As Secretarias Municipais de Saúde participantes da Política de Incentivo poderão receber como prêmio uma bonificação até R$ 50 mil. Para tanto, deverão ter alcançado os seguintes resultados: (...)execução superior a 70% dos valores anuais da PAM (grifos nosso). Ora, o valor mínimo de repasse, pelo Fundo Nacional de Saúde a um determinado município a título de incentivo é de R$ 75 mil. 70 % de R$ 75 mil é igual a R$ 52 mil. Ou seja, um determinado município pode vir a fazer jus a receber um premio no valor quase equitativo ao montante gasto no cumprimento, ainda que parcial, das metas pactuadas. Ou seja: gestões municipais serão premiadas por não terem feito mais do que a obrigação. Ou mais : mesmo que a obrigação não tenha sido integralmente feita, poder-se-á,a inda, ser-se premiado. Mas o “sistema” pensado prevê não apenas “prêmios”, mas também sanções. Mas, ao expor quais sanções seriam estas, o documento resume-se a referendar as pouco exeqüíveis sanções previstas anteriormente na Portaria MS 1679/04.
"Voltando-se ao “prêmio”.
O documento Projeto AIDS SUS-2011-2014 (Manual Operacional) é um tanto lacônico quanto as formas “legais” de utilização do montante, uma vez que dispõe apenas que “o Departamento constituirá um grupo para eleger as SMS a serem premiadas, de acordo com os parâmetros previamente estabelecidos, e indicar como essa premiação deverá ser utilizada” A julgarmos pela história pregressa, na qual o repasse de recursos foi iniciado em inícios de 2003 e a normatização do monitoramento destes oficiou-se quase dois anos depois, é possível que municípios venham a ser premiados e somente após meses os anos, a forma de utilização dos recursos destes “prêmios” sejam disciplinadas.
Neste particular cabe-nos questionar a legitimidade de que tal utilização seja normatizada por um “grupo” do Deptº Nacional de DST, AIDS e Hepatites Virais, uma vez que, por se tratar de um “prêmio”, a instância de decisão de sua utilização para este ou aquele fim, circunscreve-se à competência de decisões dos Conselhos Municipais e Estaduais de Saúde. Ainda que possamos argüir que a execução de uma política pública não é uma gincana, ou um escolar mais ou menos aplicado, sobre os quais incidem “prêmios” e “sanções”, tal questão nos parece menor, frente a uma outra : por que será que a implantação de um sistema de premiação a gestores municipais que não fizeram mais do que a obrigação em utilizar corretamente os recursos recebidos, e a indefinição de como este dinheiro pode ser legalmente utilizado, dá-se a pouco mais de um anos antes das próximas eleições municipais ?
Me desculpem, foi apenas uma curiosidade que me ocorreu.
Cláudio C. Monteiro Jr é bacharel em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo e mestre em Infectologia em Saúde Pública pelo Instituto de Infectologia em Emílio Ribas. Atua desde 1985 no enfrentamento ao HIV, em organizações governamentais e não governamentais, sendo membro da Pastoral da AIDS, CNBB.
Nenhum comentário:
Postar um comentário