Apesar de ser tido como um
modelo de política de saúde pública no exterior, o programa brasileiro
de tratamento e prevenção da Aids vive uma fase de declínio e precisa de
um "replanejamento", alertam especialistas do setor.
"O programa brasileiro tem que ser revisitado.
Deve haver uma reflexão profunda sobre a nova realidade da epidemia do
país, e um redesenho das estratégias com vistas ao acesso universal (ao
tratamento)", diz Pedro Chequer, coordenador no Brasil do Unaids, o
programa da ONU contra a Aids.
"Não podemos ficar na percepção de que o programa caminhou bem e está bem. Temos desafios novos e eles têm de ser enfrentados."
O Programa Nacional DST/Aids começou a chamar a
atenção do mundo em 1996, quando o Brasil se tornou o primeiro país em
desenvolvimento a determinar, por lei, o acesso universal à terapia
antirretroviral.
Entre 2003 e 2005, o modelo brasileiro foi
reconhecida por prêmios da Fundação Bill e Melinda Gates, da Organização
Mundial da Saúde e da Unaids. Os resultados costumam ser apresentados
em encontros internacionais, como a Conferência Internacional de Aids,
em andamento até sexta-feira em Washington.
Problemas
A imagem positiva se mantém, mas o aumento das
denúncias de organizações da sociedade civil vem alertando para uma
realidade mais dura no âmbito local.
Entre os problemas que vêm sendo apresentados
estão falta de médicos, leitos e exames para os pacientes; de
medicamentos para tratar doenças causadas pelos antirretrovirais; de
recursos para ONGs; bem como episódios de desabastecimento do coquetel
em postos de saúde, obrigando os pacientes a interromper o tratamento.
Para Eduardo Gomez, pesquisador da Universidade
Rutgers de Camden, em Nova Jersey, a história de sucesso do programa
brasileiro de Aids entrou em declínio nos últimos anos por fatores como a
saída de recursos internacionais e o enfraquecimento da relação entre o
governo e a sociedade civil.
"Historicamente, o programa de Aids brasileiro
tinha uma conexão forte com as ONGs, mas agora elas estão sem recursos e
sem motivação. O governo precisa delas para conscientizar populações
difíceis de atingir", diz Gomez, que pesquisa o sistema de saúde público
brasileiro.
'Desmantelamento'
Para o psicólogo Veriano Terto Júnior,
coordenador-geral da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids
(Abia), houve um desmantelamento na resposta brasileira à Aids.
"As pessoas estão morrendo, as ONGs estão
fechando as portas, os hospitais estão terríveis e o governo federal
está censurando suas próprias campanhas", afirma.
Ele se refere a dois episódios recentes nos
quais o governo federal decidiu rever campanhas sobre a prevenção do
HIV. As mudanças foram vistas como uma atitude conservadora, motivada
por pressão, sobretudo, de grupos evangélicos.
Na estatística nacional, a epidemia da Aids
alcançou um estágio de relativa estabilidade, atingindo cerca de 0,6% da
população. Porém, a cada ano mais de 30 mil pessoas são infectadas – no
ano passado, foram 33 mil. A epidemia cresce no Norte, no Nordeste e no
Sul.
Pedro Chequer lembra que havia dúvidas sobre a
capacidade do Brasil de financiar uma oferta universal de
antirretrovirais. Hoje, o país investe cerca de R$ 1,2 bilhão no
programa por ano, e este orçamento conta com apenas 0,25% de recursos
internacionais.
Alcance
Mas o fato de a oferta ser universal não
significa que alcance todos os soropositivos. O Ministério da Saúde
estima que 250 mil brasileiros tenham o vírus sem que saibam.
"Nosso investimento é para reduzir esse número,
ampliar o número de diagnósticos e aumentar o número de pessoas em
atendimento", afirma Eduardo Barbosa, diretor adjunto do departamento de
DST, Aids e Hepatites Virais do Ministério da Saúde. "Vamos ter que
trabalhar para absorver esse novo grupo de pessoas na rede."
À medida que aumenta a longevidade de pessoas
soropositivas, aumenta a demanda sobre a rede de saúde pública, já que
os pacientes não precisam apenas do tratamento antirretrovirais. A
terapia prolongada com o coquetel da Aids pode causar uma série de
efeitos colaterais, como diabetes, danos a órgãos vitais e lipodistrofia
(uma mudança na distribuição de gordura pelo corpo).
No tratamento dessas doenças, pacientes esbarram
em problemas típicos da rede pública: falta de leitos, falta de
remédios, falta de médicos. O programa nacional foi descentralizado em
2003, e desde então conta com Estados e municípios para executar as
políticas na ponta.
"Ainda temos vários gargalos a serem resolvidos.
Os hospitais estão realmente sobrecarregados e acabam tendo dificuldade
para o agendamento (de consultas)", diz Barbosa. "Hoje, nosso grande
investimento é para o atendimento ter uma fluidez maior. Em alguns
lugares ainda temos dificuldades, como o Rio de Janeiro."
Sem recursos
No braço carioca do Grupo Pela Vidda, a visita
da BBC Brasil durante um encontro de ativistas desencadeia uma sessão de
denúncias. Todos soropositivos, eles vêm sofrendo na pele problemas
como a falta exames para monitorar a efetividade do tratamento.
Os exames para testar a imunidade e a carga
viral devem ser feitos a cada três ou quatro meses, informa o Ministério
da Saúde. No Rio, eles dizem conseguir fazer em média uma vez por ano, e
muitas vezes têm o tratamento modificado pelo médico "às cegas", sem
ter o resultado do exame para guiar a mudança.
Apesar da importância que tiveram na elaboração
da resposta nacional à Aids, ONGs como a Abia e a Pela Vidda sobrevivem
com dificuldades, e muitas estão fechando as portas.
Os motivos são plenos de contradições. O Brasil
cresceu e pulou de categoria: passou de país de baixa e média renda para
nação de alta e média renda, e deixou de ser elegível para doações de
instituições filantrópicas. Passou de receptor a doador.
As ONGs se queixam de que o governo não
compensou por essa fuga de capitais, e elas ficaram sem recursos. O
problema maior, entretanto, parece ser que os recursos disponíveis não
chegam a elas.
Eduardo Barbosa diz que o governo federal
repassa R$ 10 milhões por ano para projetos de ONGs, mas parte da verba
fica parada. "Existe uma grande dificuldade dos Estados de fazer
parcerias com as ONGs por conta de problemas de certificação", diz.
Pedro Chequer estima que aproximadamente R$ 150 milhões destinados às ONGs estejam parados nos cofres dos Estados, acumulados.
"Há necessidade de mais dinheiro, mas Estados e
municípios não têm capacidade operativa de usar os recursos que o
governo federal repassa. Isso é grave, sinaliza um descaso com a saúde
pública. Recurso parado significa postergar a ação, às vezes ao ponto de
o paciente ter um diagnóstico tardio. Um diagnóstico tardio é uma
grande perda", diz.
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