Total de visualizações de página

Sou muito humorado. Se bem ou mal, depende da situação...

Em 1989 o HIV invadiu meu organismo e decretou minha morte em vida. Desde então, na minha recusa em morrer antes da hora, muito aconteceu. Abuso de drogas e consequentes caminhadas à beira do abismo, perda de muitos amigos e amigas, tratamentos experimentais e o rótulo de paciente terminal aos 35 quilos de idade. Ao mesmo tempo surgiu o Santo Graal, um coquetel de medicamentos que me mantém até hoje em condições de matar um leão e um tigre por dia, de dar suporte a meus pais que se tornaram idosos nesse tempo todo e de tentar contribuir com a luta contra essa epidemia que está sob controle.



Sob controle do vírus, naturalmente.



Aproveite o blog!!!



Beto Volpe



domingo, 13 de abril de 2014

Zieg Heil, doutor !!!



Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. Que o Brasil tem um imenso contingente de pessoas vivendo com o vírus HIV e não sabem, isso é fato e necessita de atitude urgente por parte de todos os atores da luta contra a AIDS, sejam eles governamentais ou não. Agora, realizar testes em ambientes festivosde forma indiscriminada, é queimar em praça pública todo o conhecimento acumulado em três décadas de epidemia. O primeiro direito de uma pessoa que vive com HIV é o de ser acolhido com a dignidade condizente ao impacto que esse momento trará para o resto de sua vida. E esse direito está sendo jogado na fogueira das vaidades, que queima em nome de números a serem apresentados em conferências e congressos mundo afora, instaurando o 4º Reich no Ministério da Saúde.

Muita coisa mudou nesses trinta anos da AIDS no Brasil, sendo que a principal transformação foi a disponibilização do coquetel, em tese, para todos os brasileiros e brasileiras que dele necessitam. Muitos direitos foram conquistados, dando a falsa impressão de que a epidemia está sob controle, ao ponto de ser considerada por alguns como uma doença crônica. Mas se existe uma situação que não mudou em absolutamente nada, é a falta de chão por parte de quem recebe o diagnóstico. Lembro do relato de minha querida amiga Beatriz Pacheco que, durante o Congresso Brasileiro de Prevenção à AIDS de 2010, viu um ativista conhecido saindo do stand onde estava sendo exibida a joia da coroa, o Fique Sabendo, estratégia para ampliar a oferta de diagnósticos. Ele vagava como que sem rumo, ao que Bia perguntou se estava tudo bem. Ele respondeu:

- Estou com AIDS... E agora?

Bia procurou confortá-lo, dizendo que ele trabalhava com o assunto e sabia o que iria acontecer: ele levaria uma vida um pouco mais regrada, mas que seria capaz de ser feliz assim mesmo. E, como se nenhuma palavra o houvesse alcançado, ele murmurou:

- Isso não podia ter acontecido comigo, eu não posso falar com ninguém sobre isso.

Pois é, um profissional de saúde que trabalha na luta contra a
epidemia se via agora do outro lado da mesa de atendimento e se sentia isolado da humanidade. Disse ele, ainda, que só tinha feito o
teste porque estavam dando uma camiseta para quem o fizesse. Que forma banal de saber que sua vida iria mudar dali em diante.


Imagem de Eric Cartman, personagem do ácido seriado South Park, trajando uma camiseta com os dizeres (em inglês): Eu tenho AIDS e tudo que eu ganhei foi essa péssima camiseta.

Esse cuidado com o momento do diagnóstico não é sem razão de ser e muito menos 'paternalismo', como diz o diretor do Departamento de DST/AIDS/Hepatites Virais do Ministério da Saúde, doutor Fábio Mesquita. Além de todo o conhecimento acumulado pela área nessas décadas, em uma pesquisa de 2010 realizada pela Faculdade de Medicina da USP foi verificado que 81% das mulheres diagnosticadas com câncer de mama apresentaram todos os sintomas da TEPT - Transtorno do Estresse Pós Traumático e nada nos leva a crer que com o diagnóstico de HIV+ seja diferente.

Agora uma equipe do Ministério da Saúde chega a São Vicente, minha querida e maltratada cidade, para acompanhar a implantação de um projeto que visa realizar testes de HIV, entre outros pontos, na maior balada GLS do litoral, o entorno do Quiosque da Cris na Praia do Itararé. Para viabilizar a iniciativa o ministério convidou uma ONG sobre a qual poucos tem o que falar, mesmo porque não se sabe ao certo o que se faz por lá. Apesar de ser a mais antiga da região, ela tem pouca transparência em suas atividades, pois só vem a público uma vez ao ano para pedir apoio a seu bazar beneficente de Natal. Essa ONG, apesar de pertencer a uma rede nacional de ONGs homônimas, jamais quis se articular com as outras instituições do pedaço e também só comparece a reuniões de conselhos de direitos quando necessita de aval dos mesmos para formalizar contratos com entes governamentais. A falta de noção é tamanha que, ao invés de procurar a Prefeitura de São Vicente para articular a ação, a ONG procurou a Prefeitura de Santos. 

Agora, o mais estranho é que, quando esse assunto veio à baila, boa parte dos profissionais de saúde e gestores contatados se mostraram, no mínimo, bastante apreensivos. E agora, logo após a chegada da equipe do ministério, todos mudaram de ideia. O que teria acontecido de tão radical, ao ponto de interferir na opinião de respeitáveis profissionais que atuam nos serviços de AIDS há tanto tempo? Quem sabe os laços afetivos entre esses profissionais e Dr. Fábio, que tem brilhante passado à frente de Santos e São Vicente nos anos de chumbo da epidemia e assim conquistou respeito internacional. É, ao menos, a explicação menos nefasta que me ocorre. Talvez jamais saibamos. 

Mas uma coisa é certa, a luta contra a AIDS em nosso país está caminhando a passos largos para um abismo, para onde também estão sendo lançadas as pessoas que hoje adentram ao serviço. Na maioria dos municípios brasileiros a média de espera entre o diagnóstico e a primeira consulta é de mais de cinco meses. A realização de exames é outra prova de resistência à qual as pessoas são submetidas, naquilo que hoje não passa de um arremedo do programa governamental de sucesso que já foi um dia. A descentralização da assistência é um pesadelo que está se tornando real e os efeitos colaterais do coquetel estão matando mais que a própria AIDS, enquanto o governo federal dá de ombros para as pessoas com HIV, que já não sabem mais o que fazer para receber o mínimo de atenção para nossa qualidade de vida.

Assim como a Europa do final dos anos 1930, a luta contra a AIDS vê um rolo compressor passando por cima de tudo e de todos, pois a preocupação é com números, afinal o Brasil vem sendo duramente questionado internacionalmente sobre o grande número de pessoas que vivem com HIV e estão circulando por aí, sem saber. E, na pressa, que se queimem os livros e o saber, em nome dos resultados. Talvez mudando o nome da iniciativa a situação se aproxime mais da realidade percebida por todos, menos pela encastelada equipe do Ministério da Saúde. Ao invés de 'Fique sabendo', é só mudar para 'Quem procura acha'. Afinal, é só dar uma camisetinha que está tudo certo.

Zieg Heil, doutor!


2 comentários:

  1. Encantada com a análise :) bj Beto!
    Nádia Elizabeth

    ResponderExcluir
  2. Bastante enaltecedor caro Beto!!! E diria mas, estas organizações parceiras de pouca trabalho ou nenhum, são o foco das ações do governo Federal o antes parceiro na luta contra a AIDS.
    Wladimir Reis

    ResponderExcluir