O Desembargador Sidney ressucitou a figura da Amélia, criada por Mário Lago, e que era mulher de verdade. Pois, segundo seu entendimento, Luana Piovani não seria 'oprimida e subjugada' o bastante para ter direito à proteção da Lei Maria da Penha. Brilhante artigo da antropóloga Débora Diniz.
Beto Volpe
Luana Piovani é uma atriz. E, ainda, uma mãe bonita, jovem e famosa. O 
desembargador Sidney Rosa da Silva preferiu descrevê-la como uma personagem na 
sentença em que negou o pedido de proteção contra o ator Dado Dolabella. O papel 
foi traçado como quem escreve uma novela: nele, Piovani seria uma mulher “nunca 
oprimida e subjugada aos caprichos do homem”. Como mulher poderosa, parece que 
sua ação penal desafiou não só seu ex-companheiro, mas também o representante da 
Justiça, que considerou não ser aplicável a Lei Maria da Penha a mulheres como 
ela. Não é a primeira vez que a atriz se vê confrontada com essa negação do 
feminino ao apresentar-se como vítima na vida real. Em uma recente controvérsia 
em sua conta no Twitter, um dos fãs de Dolabella teria dito “homem de verdade 
não bate em mulher de verdade”. “Verdade” era uma ironia à alegação de Luana de 
que teria sido vítima de violência de gênero. Só mulheres de verdade poderiam 
ser protegidas pela Lei Maria da Penha, disseram os novos especialistas em 
direito penal. Se há uma verdade nessa controvérsia, é que a lei não impõe 
condicionalidades às mulheres: todas devem ser igualmente protegidas. 
Não sei bem o que seria uma mulher de verdade, mas me esforçarei por 
interpretar os rastros deixados pela sentença. A discussão não é a anatomia de 
Luana, mas suas performances de gênero, como diriam algumas feministas. A ação 
penal de 2008 acusa Dolabella de tê-la agredido em uma boate; entre os dois 
haveria ainda Esmeralda de Souza, a camareira também agredida por ter se lançado 
para proteger Luana. Há imagens da cena, o que retira da discussão a pergunta 
sobre a verdade da violência. O que resta é saber como qualificar Luana: uma 
vítima sem gênero para o direito penal ou uma mulher de verdade para efeitos da 
Lei Maria da Penha? A decisão do desembargador, com uma verve de especialista em 
desigualdade de gênero, foi clara: “O campo de atuação da respectiva lei está 
traçado pelo binômio hipossuficiência e vulnerabilidade”. O sentido 
dicionarizado da palavra “binômio” deixa a classificação de mulher de verdade 
ainda mais curiosa: “Nome científico composto por dois nomes; um substantivo que 
designa o gênero e um adjetivo que designa a espécie”.
Sob o risco de me equivocar na ordem criativa do desembargador, imagino que o 
substantivo seja “hipossuficiência”, e o adjetivo, “vulnerável”. As mulheres 
como gênero humano teriam que ser pobres e dependentes dos homens. Luana provoca 
essa descrição do feminino, pois é rica e poderosa. Como espécie desse gênero, 
teria ainda que ser vulnerável. Vulnerável é daqueles adjetivos multiuso: 
descrevem tudo e todas, ao mesmo tempo que são escorregadios. No campo dos 
estudos de gênero, vulnerabilidade é a condição do feminino em sociedades com 
tramas diversas de patriarcado. Luana pode ser rica, mas seu corpo é vulnerável 
à dominação masculina. Não é à toa que sofreu agressões. Sua independência não 
foi capaz de blindar o seu corpo a quem crê poder discipliná-la pela violência. 
Parece-me ser esse o ponto esquecido pela equivocada sociologia de gênero da 
sentença: Luana subverteu o status de subalternidade do feminino, mas não 
emudeceu a ordem política que a reduz a um ser da espécie vulnerável.
Mas o conteúdo da decisão judicial prossegue na enviesada sociologia de 
gênero que fundamentaria a interpretação da Lei Maria da Penha. Seria preciso 
ainda que o ato violento tivesse ocorrido em âmbito doméstico e por alguém em 
relação de afetividade estável. A agressão se deu em uma boate, um espaço 
ambíguo para a moral que persegue as mulheres de verdade; além disso, Luana e 
Dolabella não viviam uma relação estável, mas de afetividade ocasional. Ora, a 
lei não exige nem casamento nem tampouco casa como condicionantes para sua 
aplicação. Essa perturbação interpretativa provocada pela figura de Luana não 
deve ser entendida como um curto-circuito isolado, mas como um indicador do 
perfil de quais seriam as mulheres enquadradas no qualificador de vítimas: 
somente aquelas pobres, dependentes e subjugadas à casa. 
As mulheres são diferentes entre si. Muitas delas são representantes do 
gênero hipossuficiente, mas todas são da espécie vulnerável. Luana é rica, 
bonita e famosa, mas nem por isso conseguiu escapar da perversidade da violência 
de gênero. Ela foi agredida por um homem de suas relações de intimidade e afeto 
– duas variáveis esquecidas pelo desembargador, que anuncia que o uso universal 
da Lei Maria da Penha inviabilizaria os Juizados de Violência Doméstica e 
Familiar. Não sei como proteger Luana causaria tamanha catástrofe, pois é 
exatamente pelo rosto famoso e de mulher emancipada que é possível escandalizar 
a persistência da violência de homens contra mulheres. Ao contrário do que 
imagina o desembargador, precisamos de mulheres ricas e famosas que denunciem 
quanto a vulnerabilidade do feminino não depende apenas da classe social, mas da 
espécie que representamos. 
*DEBORA DINIZ É ANTROPÓLOGA, PROFESSORA DA UNIVERSIDADE DE 
BRASÍLIA E PESQUISADORA DA ANIS – INSTITUTO DE BIOÉTICA, DIREITOS HUMANOS E 
GÊNERO
Fonte: www.estadao.com.br 


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