Peço desculpas pelo tamanho do texto, o dobro do costumeiro. Mas isso também é um desabafo de Primeiro de Dezembro.
Beto Volpe
Houve um tempo em que as pessoas precisaram se juntar em multidões e acender velas para mostrar ao governo norte americano que estava em curso uma grave epidemia, com potencial para desestabilizar a mais influente sociedade do planeta. No Brasil pessoas vivendo com HIV (ou aidéticos, segundo o in-conveniente linguajar da época) se atiravam mortas em vida nos asfaltos mais importantes de Santos e São Paulo, enquanto que a esmagadora maioria das pessoas infectadas à época, incluindo este ser, apenas esperava a morte chegar rezando, cheirando, calando. Após o reconhecimento da AIDS como prioridade, essas mesmas pessoas que acendiam velas e davam beijos no asfalto passaram a fazer parte da elaboração de diretrizes e propostas de ações para combater a epidemia, afinal não havia conhecimento sobre ela e éramos os únicos modelos a serem considerados. Sabíamos onde nos apertava o calo.
Graças a essa sinergia entre Estado e sociedade civil, notadamente as já organizadas pessoas com HIV, políticas públicas de grande impacto foram implementadas, destacando o acesso universal aos medicamentos e a criação de uma rede de serviços especializados para atendimento com equipes multidisciplinares constantemente atualizadas e focadas nas sucessivas novidades que a epidemia apresentava, seja na clínica, no serviço social ou mesmo no consultório dentário. Os medicamentos realmente tinham efeito positivo e isso refletiu nos índices de mortalidade e na qualidade de vida dos clientes. Os direitos foram sendo adquiridos através de precedentes ou trâmites legislativos, trazendo um arsenal de medidas legais para embasamento de ações judiciais ou extra judiciais por parte de escritórios especializados montados em ONGs como a Hipupiara, da qual participo desde sua concepção, e que teve como um dos marcos de sua história ter sido selecionada para defesa de duas teses em audiência pública no STF, as quais foram transcritas praticamente na íntegra no relatório final encaminhado ao Ministério da Saúde. É, eu que não creio tenho que concordar que tinha cara de doença crônica.
O astronauta Neil Armstrong disse uma vez que um pequeno passo para um homem poderia representar um grande salto para a humanidade. Da mesma forma e ao contrário, para pessoas que vivem orgânica e socialmente sob pressão, um pequeno lapso de tempo pode parecer uma eternidade. Um pequeno movimento recuperado no sequelado polegar é motivo de festa em família, ao passo que a cada situação inédita para os infectologistas os fantasmas que povoam nossas mentes acordam, especialmente na hora de dormir. E isso vem desde o diagnóstico e nos coloca constantemente em prontidão para mais uma batalha. Quase tanto quanto nosso pobre e inflamado organismo, que é forçado a funcionar como um Fusca tentando alcançar uma Ferrari, enlouquecidamente acelerado, desgastando as peças e antecipando nossas antes tão longínquas andromenopausas. Nossa face e nossos membros começaram a afinar, deixando à mostra os contornos de nossa fragilizada musculatura e de nossas articulações. O tronco foi se expandindo de diversas formas, seja em uma abstêmia barriguinha de chopp ou na formação de seios top model em desconcertados e deprimidos homens heterossexuais.
Todos estávamos virando coxinhas de cabeça para baixo, como nervosamente disse uma participante de um encontro de pessoas com HIV. Para variar só um pouco, as mulheres estavam sendo as mais atingidas pelo recém divulgado efeito colateral chamado 'lipodistrofia', que reordena a distribuição de gordura pelo corpo, esvaziando face e membros (incluindo aquela bela bunda dos anos setenta) e acumulando no tronco em diversos lugares como nas mamas, no pescoço e no cangote, mas também nos espaços intra viscerais e o mais assustador: no sangue. Um amigo de Praia Grande apresentou 3014 de triglicérides, em muito superou a meus modestos 2760. A lipodistrofia foi apresentada ao mundo, sendo recebida com ações tanto da parte dos cientistas quanto das pessoas vivendo com HIV, que como nos anos oitenta cobravam dos governantes ações para dar suporte a essa nova realidade. É, essa história de doença crônica cada vez mais estava parecendo a rotulação de peste gay, muito conveniente. Para alguns médicos que sacralizam sua profissão a solução seria simplesmente a pessoa adotar hábitos saudáveis e para governantes que, também como nos anos oitenta, diziam que eram casos isolados e que sua divulgação seria temerária para a adesão aos medicamentos.
O tempo passou, sempre de forma relativa, e novas complicações iriam se suceder atropelando a todos os envolvidos que não sabiam o que fazer com a realidade demonstrada em um estudo coordenado por um conceituado pesquisador do Rio de Janeiro que deu contornos à situação. Proporções díspares entre os óbitos de pessoas com HIV e da população em geral caracterizavam a crescente ocorrência de cânceres (0,8 contra 0,08%), infartos (idem) e danos ósseos (26% das pessoas em tratamento) em pessoas que estavam muito bem, obrigado, tomando seus medicamentos e com situação laboratorial extremamente satisfatória. Desde o surgimento dos efeitos colaterais poucas vozes se insurgiram contra o silêncio e passividade do governo federal, sendo um assunto secundário mesmo para a sociedade civil organizada que passou a ser pautada por viagens e projetos financiados pelos gestores. O argumento governamental para sua apatia mudara, não era mais o de prejudicar a adesão, mas o de que estaríamos envelhecendo e isso seria uma vitória do avanço científico, do acesso universal e de ações de adesão. Milhares de mortes anuais permaneciam na invisibilidade, como permanecem até hoje.
A ciência entrou em estado de alerta, parecia que investir maciçamente em medicamentos em detrimento a pesquisas pela cura da AIDS não era tão sustentável, a clientela continuava morrendo, ainda que os boletins oficiais divulgados a cada primeiro de dezembro se assemelhassem cada vez mais com um primeiro de abril. Voltaram a pulular mundo afora diversas pesquisas pela cura, com recentes e grandiosos resultados e que trazem de volta a esperança das pessoas um dia poderem acordar desse pesadelo e suspirarem aliviadas. Esse é, talvez, o maior reconhecimento de que a AIDS se torna cada vez mais complexa, ao contrário do que acredita o Ministério da Saúde ao implementar a descentralização da assistência das pessoas com HIV para as Unidades Básicas de Saúde. As mesmas que têm um corpo de funcionários com muitos deles desmotivados pelos baixos salários, pela falta de um plano de carreira e pela sobrecarga de atribuições. As mesmas UBSs que até hoje não conseguiu uma vitória sequer na tão propalada 'Cruzada contra a Sífilis Congênita', que continua gerando 11 mil bebês anualmente. As mesmas UBSs que frequentam as editorias policiais da mídia, desnudando a qualidade de assistência esperada na atenção básica. A mesma atenção básica que o Ministro da Saúde, Dr. Alexandre Padilha, quer que cuide de uma doença reconhecidamente mais complexa e cara em seu manejo.
Isso tudo a despeito de depoimentos como o de um jovem de 19 anos, que é membro da rede nacional de jovens vivendo com HIV, dado no 1º Seminário Nacional de Eventos Adversos em AIDS e Hepatites Virais, o qual tive a honra de escrever e coordenar. Em sua nervosa fala ele trouxe à luz uma realidade de ficção científica, a de que muitos jovens estariam brochando antes dos 25 anos e que muitas meninas estariam entrando na menopausa aos dezessete. Não era para eles estarem envelhecendo, como nos queria fazer crer boa parte de gestores, médicos e técnicos. Esses jovens deveriam estar florescendo para a vida, mas eles se defrontaram com seus relógios biológicos desde sua concepção.
Esta semana participei de um excelente seminário sobre direitos humanos na área da AIDS em Niterói/RJ, a convite do Grupo Pela Vidda local, que teve um foco especial nas ações do Direito e da Previdência. Foi daqueles eventos que a gente não sabe se fica feliz ou mais apreensivo, pois da parte de juízes federais de de médicos peritos de grande incidência nas esferas governamentais partiu um discurso muito parecido com o de pessoas com HIV. O discurso de que o Estado tem retrocedido nas políticas públicas até mesmo na ponta, com jovens juízes e médicos peritos desconsiderando lutas históricas e cassando direitos conquistados através da perda de muitos militantes que gastaram suas últimas energias lutando para que essa epidemia e as pessoas por ela afetados tivessem o merecido respeito e atenção. A unanimidade entre os palestrantes e debatedores de que é um crime antecipado transferir a assistência para a atenção básica nos deu alento e munição para que lavemos o rosto, ventilemos nossos corações e mentes para reforçar a luta de forma focada e ética.
Sim, porque um tuiuiú me contou, fato confirmado pela organização, que nesse mesmo evento uma grande liderança das pessoas vivendo com HIV, ou ao menos pensa que é, teria recebido passagem aérea e estadia dos cofres públicos, não compareceu por alegados motivos de saúde e, pasmem! Não estava dodói e chegou a tentar bloquear as passagens para que pudessem ser utilizadas em situação mais conveniente, quem sabe no reveillon ou carnaval na Cidade Maravilhosa? Esse tipo de comportamento de uma minoria, além de eticamente questionável (para não dizer condenável), contribui para que nossa organização vire risco de vida, parafraseando o poeta. Assim como um gestor estadual ou municipal que acumulou verbas de incentivo vindas do ministério e que agora está esfregando as mãos pensando no destino que dará a um dinheiro que era para ser aplicado na luta contra a AIDS e que em primeiro de janeiro passará para o caixa da prefeitura. Ambos devem ser severamente questionados por suas atitudes, talvez até em alguma corte internacional, uma vez que no Brasil a Justiça anda cada vez mais cega.
Ministro, este final de semana comemora-se mais um aniversário da epidemia. Aquela criança terrível dos anos oitenta e aquela jovem rebelde dos anos noventa agora é uma adulta fortemente determinada. A AIDS é consequência da ingênua ação do HIV para garantir sua sobrevivência. Ele só quer ser feliz e não nos causaria mal algum se fosse possível conviver conosco sem brigas e nem medicamentos, coisa que a evolução acabará dando conta. Resta saber se o senhor e os técnicos que o embasaram a tomar tal decisão, a de considerar a AIDS como uma coisa tão básica quanto um tubinho preto, também se deixarão levar pelos conceitos de Darwin e passarão a refletir um pouco mais sobre o assunto, a considerar as evidências científicas e a ouvir mais atenciosamente o inexorável ponto de vista das pessoas com HIV. Neste aniversário da epidemia, que não tem nada para ser comemorado, não acenderemos velas, como nos anos oitenta. Nós as apagaremos após o irônico 'muitos anos de vida' e continuaremos a cantar, em uníssono:
- AHÁ... UHÚ... Ô PADILHA, EU VOU COMER SEU.... BOLO!
Beto Volpe