O fato foi simplesmente que ele fez tudo errado, e ao final de uma
longa e revolucionária carreira, não importava com quanta frequência
estivesse certo, o quão poderoso tinha sido ou o que isso significaria
para seu legado.
O dr. Robert L. Spitzer, considerado por alguns como o pai da
psiquiatria moderna, que completa 80 anos nesta semana, acordou
recentemente às 4 horas da madrugada ciente de que tinha que fazer algo
que não é natural para ele.
Ele se esforçou e andou cambaleando no escuro. Sua mesa parecia
impossivelmente distante; Spitzer sofre de mal de Parkinson e tem
dificuldade para caminhar, se sentar e até mesmo manter sua cabeça
ereta.
Foto 4 de 16 - Grupo posa com guarda-chuva multicolor durante a marcha pelo Dia Internacional Contra a Homofobia, em Tirana, na Albânia
Mais Armando Babani/EFE
A palavra que ele às vezes usa para descrever essas limitações
–patéticas– é a mesma que empregou por décadas como um machado, para
atacar ideias tolas, teorias vazias e estudos sem valor.
Agora, ali estava ele diante de seu computador, pronto para se retratar
de um estudo que realizou, uma investigação mal concebida de 2003 que
apoiava o uso da chamada terapia reparativa para “cura” da
homossexualidade, voltada para pessoas fortemente motivadas a mudar.
O que dizer? A questão do casamento gay estava sacudindo novamente a
política nacional. O Legislativo da Califórnia estava debatendo um
projeto de lei proibindo a terapia como sendo perigosa. Um jornalista de
revista que se submeteu à terapia na adolescência, o visitou
recentemente em sua casa, para explicar quão miseravelmente
desorientadora foi a experiência.
E ele soube posteriormente que um relatório da Organização Mundial de
Saúde, divulgado na quinta-feira (17), considera a terapia “uma séria
ameaça à saúde e bem-estar –até mesmo à vida– das pessoas afetadas”.
Os dedos de Spitzer tremiam sobre as teclas, não confiáveis, como se
sufocassem com as palavras. E então estava feito: uma breve carta a ser
publicada neste mês, na mesma revista onde o estudo original apareceu.
“Eu acredito que devo desculpas à comunidade gay”, conclui o texto.
Perturbador da paz
A ideia de estudar a terapia reparadora foi toda de Spitzer, dizem
aqueles que o conhecem, um esforço de uma ortodoxia que ele mesmo ajudou
a estabelecer.
No final dos anos 90 como hoje, o establishment psiquiátrico
considerava a terapia sem valor. Poucos terapeutas consideravam a
homossexualidade uma desordem.
Nem sempre foi assim. Até os anos 70, o manual de diagnóstico do campo
classificava a homossexualidade como uma doença, a chamando de
“transtorno de personalidade sociopática”. Muitos terapeutas ofereciam
tratamento, incluindo os analistas freudianos que dominavam o campo na
época.
Os defensores dos gays fizeram objeção furiosamente e, em 1970, um ano
após os protestos de Stonewall para impedir as batidas policiais em um
bar de Nova York, um grupo de manifestantes dos direitos dos gays
confrontou um encontro de terapeutas comportamentais em Nova York para
discutir o assunto. O encontro foi encerrado, mas não antes de um jovem
professor da Universidade de Columbia sentar-se com os manifestantes
para ouvir seus argumentos.
“Eu sempre fui atraído por controvérsia e o que eu ouvi fazia sentido”,
disse Spitzer, em uma entrevista em sua casa na semana passada. “E eu
comecei a pensar, bem, se é uma desordem mental, então o que a faz
assim?”
Ele comparou a homossexualidade com outras condições definidas como
transtornos, tais como depressão e dependência de álcool, e viu
imediatamente que as últimas causavam angústia acentuada e dano,
enquanto a homossexualidade frequentemente não.
Ele também viu uma oportunidade de fazer algo a respeito. Spitzer era
na época membro de um comitê da Associação Americana de Psiquiatria, que
estava ajudando a atualizar o manual de diagnóstico da área, e
organizou prontamente um simpósio para discutir o lugar da
homossexualidade.
A iniciativa provocou uma série de debates amargos, colocando Spitzer
contra dois importantes psiquiatras influentes que não cediam. No final,
a associação psiquiátrica ficou ao lado de Spitzer em 1973, decidindo
remover a homossexualidade de seu manual e substituí-la pela alternativa
dele, “transtorno de orientação sexual”, para identificar as pessoas
cuja orientação sexual, gay ou hétero, lhes causava angústia.
Apesar da linguagem arcana, a homossexualidade não era mais um
“transtorno”. Spitzer conseguiu um avanço nos direitos civis em tempo
recorde.
“Eu não diria que Robert Spitzer se tornou um nome popular entre o
movimento gay mais amplo, mas a retirada da homossexualidade foi
amplamente celebrada como uma vitória”, disse Ronald Bayer, do Centro
para História e Ética da Saúde Pública, em Columbia. “‘Não Mais Doente’
foi a manchete em alguns jornais gays.”
Em parte como resultado, Spitzer se encarregou da tarefa de atualizar o
manual de diagnóstico. Juntamente com uma colega, a dra. Janet
Williams, atualmente sua esposa, ele deu início ao trabalho. A um ponto
ainda não amplamente apreciado, seu pensamento sobre essa única questão
–a homossexualidade– provocou uma reconsideração mais ampla sobre o que é
doença mental, sobre onde traçar a linha entre normal e não.
O novo manual, um calhamaço de 567 páginas lançado em 1980, se
transformou em um best seller improvável, tanto nos Estados Unidos
quanto no exterior. Ele estabeleceu instantaneamente o padrão para
futuros manuais psiquiátricos e elevou seu principal arquiteto, então
próximo dos 50 anos, ao pináculo de seu campo.
Ele era o protetor do livro, parte diretor, parte embaixador e parte
clérigo intratável, rosnando ao telefone para cientistas, jornalistas e
autores de políticas que considerava equivocados. Ele assumiu o papel
como se tivesse nascido para ele, disseram colegas, ajudando a trazer
ordem para um canto historicamente caótico da ciência.
Mas o poder tem seu próprio tipo de confinamento. Spitzer ainda podia
perturbar a paz, mas não mais pelos flancos, como um rebelde. Agora ele
era o establishment. E no final dos anos 90, disseram amigos, ele
permanecia tão inquieto como sempre, ávido em contestar as suposições
comuns.
Foi quando se deparou com outro grupo de manifestantes, no encontro
anual da associação psiquiátrica em 1999: os autodescritos ex-gays. Como
os manifestantes homossexuais em 1973, eles também se sentiam
ultrajados por a psiquiatria estar negando a experiência deles –e
qualquer terapia que pudesse ajudar.
A terapia reparativa
A terapia reparativa, às vezes chamada de terapia de “conversão” ou
“reorientação sexual”, é enraizada na ideia de Freud de que as pessoas
nascem bissexuais e podem se mover ao longo de um contínuo de um extremo
ao outro. Alguns terapeutas nunca abandonaram a teoria e um dos
principais rivais de Spitzer no debate de 1973, o dr. Charles W.
Socarides, fundou uma organização chamada Associação Nacional para
Pesquisa e Terapia da Homossexualidade (Narth, na sigla em inglês), no
sul da Califórnia, para promovê-la.
Em 1998, a Narth formou alianças com grupos de defesa socialmente
conservadores e juntos eles iniciaram uma campanha agressiva, publicando
anúncios de página inteira em grandes jornais para divulgar histórias
de sucesso.
“Pessoas com uma visão de mundo compartilhada basicamente se uniram e
criaram seu próprio grupo de especialistas, para oferecer visões
alternativas de políticas”, disse o dr. Jack Drescher, psiquiatra em
Nova York e coeditor de “Ex-Gay Research: Analyzing the Spitzer Study
and Its Relation to Science, Religion, Politics, and Culture”.
Para Spitzer, a pergunta científica no mínimo valia a pena ser feita:
qual era o efeito da terapia, se é que havia algum? Estudos anteriores
tinham sido tendenciosos e inconclusivos.
“As pessoas me diziam na época: ‘Bob, você vai arruinar sua carreira,
não faça isso’”, disse Spitzer. “Mas eu não me sentia vulnerável.”
Ele recrutou 200 homens e mulheres, dos centros que realizavam a
terapia, incluindo o Exodus International, com sede na Flórida, e da
Narth. Ele entrevistou cada um profundamente por telefone, perguntando
sobre seus impulsos sexuais, sentimentos, comportamentos antes e depois
da terapia, classificando as respostas em uma escala.
Spitzer então comparou os resultados de seu questionário, antes e
depois da terapia. “A maioria dos participantes relatou mudança de uma
orientação predominante ou exclusivamente homossexual antes da terapia,
para uma orientação predominante ou exclusivamente heterossexual no ano
passado”, concluiu seu estudo.
O estudo –apresentado em um encontro de psiquiatria em 2001, antes da
publicação– tornou-se imediatamente uma sensação e grupos de ex-gays o
apontaram como evidência sólida de seu caso. Afinal aquele era Spitzer, o
homem que sozinho removeu a homossexualidade do manual de transtornos
mentais. Ninguém poderia acusá-lo de tendencioso.
Mas líderes gays o acusaram de traição e tinham suas razões.
O estudo apresentava problemas sérios. Ele se baseava no que as pessoas
se lembravam de sentir anos antes –uma lembrança às vezes vaga. Ele
incluía alguns defensores ex-gays, que eram politicamente ativos. E não
testava uma terapia em particular; apenas metade dos participantes se
tratou com terapeutas, enquanto outros trabalharam com conselheiros
pastorais ou em grupos independentes de estudos da Bíblia.
Vários colegas tentaram impedir o estudo e pediram para que ele não o publicasse, disse Spitzer.
Mas altamente empenhado após todo o trabalho, ele recorreu a um amigo e
ex-colaborador, o dr. Kenneth J. Zucker, psicólogo-chefe do Centro para
Vício e Saúde Mental, em Toronto, e editor do “Archives of Sexual
Behavior”, outra revista influente.
“Eu conhecia o Bob e a qualidade do seu trabalho, e concordei em publicá-lo”, disse Zucker em uma entrevista na semana passada.
O artigo não passou pelo habitual processo de revisão por pares, no
qual especialistas anônimos avaliam o artigo antes da publicação.
“Mas eu lhe disse que o faria apenas se também publicasse os
comentários” de resposta de outros cientistas para acompanhar o estudo,
disse Zucker.
Esses comentários, com poucas exceções, foram impiedosos. Um citou o
Código de Nuremberg de ética para condenar o estudo não apenas como
falho, mas também moralmente errado.
“Nós tememos as repercussões desse estudo, incluindo o aumento do
sofrimento, do preconceito e da discriminação”, concluiu um grupo de 15
pesquisadores do Instituto Psiquiátrico do Estado de Nova York, do qual
Spitzer era afiliado.
Spitzer não deixou implícito no estudo que ser gay era uma opção, ou
que era possível para qualquer um que quisesse mudar fazê-lo com
terapia. Mas isso não impediu grupos socialmente conservadores de
citarem o estudo em apoio a esses pontos, segundo Wayne Besen, diretor
executivo da Truth Wins Out, uma organização sem fins lucrativos que
combate o preconceito contra os gays.
Em uma ocasião, um político da Finlândia apresentou o estudo no
Parlamento para argumentar contra as uniões civis, segundo Drescher.
“Precisa ser dito que quando este estudo foi mal utilizado para fins
políticos, para dizer que os gays deviam ser curados –como ocorreu
muitas vezes. Bob respondia imediatamente, para corrigir as percepções
equivocadas”, disse Drescher, que é gay.
Mas Spitzer não conseguiu controlar a forma como seu estudo era
interpretado por cada um e não conseguiu apagar o maior erro científico
de todos, claramente atacado em muitos dos comentários: simplesmente
perguntar para as pessoas se elas mudaram não é evidência de mudança
real. As pessoas mentem, para si mesmas e para os outros. Elas mudam
continuamente suas histórias, para atender suas necessidades e humores.
Resumindo, segundo quase qualquer medição, o estudo fracassou no teste
do rigor científico que o próprio Spitzer foi tão importante em exigir
por muitos anos.
“Ao ler esses comentários, eu sabia que era um problema, um grande
problema, e um que eu não podia responder”, disse Spitzer. “Como você
sabe que alguém realmente mudou?”
Reconhecimento
Foram necessários 11 anos para ele reconhecer publicamente.
Inicialmente ele se agarrou à ideia de que o estudo era exploratório,
uma tentativa de levar os cientistas a pensarem duas vezes antes de
descartar uma terapia de cara. Então ele se refugiou na posição de que o
estudo se concentrava menos na eficácia da terapia e mais em como as
pessoas tratadas com ele descreviam mudanças na orientação sexual.
“Não é um pergunta muito interessante”, ele disse. “Mas por muito tempo
eu pensei que talvez não tivesse que enfrentar o problema maior, sobre a
medição da mudança.”
Após se aposentar em 2003, ele permaneceu ativo em muitas frentes, mas o
estudo da terapia reparativa permaneceu um elemento importante das
guerras culturais e um arrependimento pessoal que não o deixava em paz.
Os sintomas de Parkinson pioraram no ano passado, o esgotando física e
mentalmente, tornando ainda mais difícil para ele lutar contra as dores
do remorso.
E, em um dia em março, Spitzer recebeu um visitante. Gabriel Arana, um
jornalista da revista “The American Prospect”, entrevistou Spitzer sobre
o estudo sobre terapia reparativa. Aquela não era uma entrevista
qualquer; Arana se submeteu à terapia reparativa na adolescência e o
terapeuta dele recrutou o jovem para o estudo de Spitzer (Arana não
participou).
“Eu perguntei a ele sobre todos os seus críticos e ele disse: ‘Eu acho
que eles estão certos’”, disse Arana, que escreveu sobre suas próprias
experiências no mês passado. Arana disse que a terapia reparativa acabou
adiando sua autoaceitação e lhe induziu a pensamentos de suicídio. “Mas
na época que fui recrutado para o estudo de Spitzer, eu era considerado
uma história de sucesso. Eu teria dito que estava fazendo progressos.”
Aquilo foi o que faltava. O estudo que na época parecia uma mera nota
de rodapé em uma grande vida estava se transformando em um capítulo. E
precisava de um final apropriado –uma forte correção, diretamente por
seu autor, não por um jornalista ou colega.
Um esboço da carta já vazou online e foi divulgado.
“Você sabe, é o único arrependimento que tenho; o único profissional”,
disse Spitzer sobre o estudo, perto do final de uma longa entrevista. “E
eu acho que, na história da psiquiatria, eu não creio que tenha visto
um cientista escrever uma carta dizendo que os dados estavam lá, mas
foram interpretados erroneamente. Que tenha admitido isso e pedido
desculpas aos seus leitores.”
Ele desviou o olhar e então voltou de novo, com seus olhos grandes cheios de emoção. “Isso é alguma coisa, você não acha?”
Benedict Carey
The New York Times, em Princeton (EUA)
Tradutor: George El Khouri Andolfato