GENI E A ÉTICA
Setembro de 2006
Discurso na Mesa de Abertura do
Congresso da Sociedade Paulista de Infectologia, 2006
Joãozinho chega da escola, confuso:
- Pai, hoje a professora deu uma aula estranha, não entendi nada. Ela falou sobre ética. O que é isso, papai?
Ao que o pai responde:
- Vou te dar um exemplo: imagine uma velha senhora, bem pobrezinha, que vem à nossa loja, faz uma compra de dez reais e, por engano, paga com uma nota de cinqüenta. Aí entra a ética, o papai conta pro sócio.
Nunca se falou tanto em ética em nosso país. É a Geni do momento: todos a desejam, todos a possuem. E em um momento eleitoral a classe política transforma essa veneração pela ética em uma espécie de epidemia. E não é somente a classe política, o discurso ético está presente também nos gestores públicos em saúde, nos laboratórios farmacêuticos, nos médicos e profissionais da área da saúde e do próprio movimento social. É a ética na saúde pública. O problema é que esse conceito muitas vezes se restringe a essa área mesmo, a conceitual.
Os interesses político-partidários fazem com que de dois em dois anos vivamos um festival de desastrosas indicações para cargos estratégicos dentro do SUS. Gestores públicos vivem às voltas com escândalos envolvendo aplicação de verbas em metas muitas vezes questionáveis através de processos e licitações muitas vezes suspeitas. Laboratórios farmacêuticos, especialmente os detentores de patentes, se opõem a uma visão de saúde pública mais equilibrada entre a questão humanitária e o lucro exigido pelos seus acionistas. Médicos e profissionais da área da saúde por vezes esquecem dos juramentos feitos em suas formaturas e tratam os clientes do SUS (também chamados de pacientes) de forma desrespeitosa e por vezes desumana, trazendo para sua prática o conceito “aidético”, onde a enfermidade se sobrepõe ao ser humano. E um movimento social que por vezes parece que esqueceu que, se temos um dos melhores programas de AIDS do mundo (alguns crêem que seja o melhor), esse foi conquistado pela força do ativismo. A chave para o sucesso do Programa Nacional de DST/AIDS é e sempre foi a participação cidadã, é o controle social exercido pelas pessoas vivendo com HIV e pelas ONGs que faz com que se implante, mantenha e avance em políticas públicas modernas e eficientes.
E a ética também está no lema do VI Congresso da Sociedade Brasileira de DST e II Congresso Brasileiro de AIDS, ocorrido em Santos de 17 a 20 últimos: “DST/AIDS no SUS: Compromisso e Interfaces”. A escolha do tema não poderia ter sido mais feliz, ainda mais quando temos para um futuro imediato a implantação do Pacto pela Saúde, que irá redimensionar as interfaces dentro do SUS e que necessitará, mais do que nunca, de comprometimento para que esse processo tenha êxito. Inclusive e principalmente do controle social, onde a força do ativismo seja a prioridade e não a mera execução de projetos e prestação de serviços para os gestores como tem se verificado como tendência, confundindo a atribuição de papéis de cada um dentro da resposta brasileira.
Vivemos cada qual em seu pequeno espaço dentro do amplo universo chamado AIDS no SUS e por vezes nos passam desapercebidos problemas específicos enfrentados pelos vários setores dessa estratégia. E os problemas são muitos, porém o principal deles é o conceito de que a AIDS tornou-se uma doença crônica, sob controle. Por conta disso temos uma queda significativa nas ações de prevenção por parte dos gestores municipais, onde a dificuldade encontrada para a contratação de agentes é a desculpa usual para a não execução de metas e acúmulo de verbas de incentivos sem resultados alcançados. Retrocesso que também assola a vida das pessoas vivendo com HIV, com a revogação ou criação de entraves para a plena garantia de direitos como de benefícios sociais e previdenciários, estes de forma sistemática e programada. O conceito de grupo de risco é novamente reforçado com a manutenção das restrições de doação de sangue pelos gays e outros HSH.
Quem esteve a par da Conferência da Sociedade Internacional de AIDS ocorrida ano passado no Rio de Janeiro ainda lembra que foi unânime a opinião de que sem transferência de tecnologia e produção local de medicamentos não será possível suprir a demanda mundial e equilibrar as relações entre capital e humanidade na prática de mercado e preços internacionais.. Vemos no Brasil nossas mulheres e nossos adolescentes cada vez mais vulneráveis à infecção, lembrando o quadro sombrio pintado na mesma Conferência onde foi relatado que em algumas regiões da África a população é exclusivamente masculina pois todas as mulheres haviam morrido e órfãos cantam em suas cantigas de roda o momento em que levaram os caixões dos pais para serem sepultados. E recentemente na Conferência de Toronto, foi reafirmada a existência de uma “super-infecção” em curso no mundo e que a mesma já estaria no Brasil, com prevalência de até 80% de vírus recombinantes em alguns serviços de saúde, sem que ainda se saiba ao certo que impacto trará para a assistência e para a expectativa de vida das pessoas afetadas.
No início da epidemia costumava-se ironizar dizendo, “ai que saudades da sífilis e da gonorréia”. Hoje, a ironia é “ai, que saudades do vômito e da diarréia”. Os efeitos colaterais têm se transformado em um pesadelo tanto para as pessoas vivendo com HIV como para os profissionais envolvidos em seu manejo. Em 1998 surgiu a lipodistrofia, para a qual a ciência deu sua pronta resposta com técnicas e alternativas para minimizar seu impacto, porém a resposta pública veio oficialmente apenas em 2004 com a publicação de portaria contendo uma série de procedimentos. E hoje, em 2006, ainda são muitas as dificuldades enfrentadas pelas pessoas vivendo com HIV em ter atendido apenas um de seus itens, o preenchimento facial. Casos de osteonecrose que estão sendo tratados à base de diclofenaco, afinal, são mais muito baratos do que próteses. Assistimos a uma verdadeira epidemia paralela de linfomas ocorrendo em perfis diversos dos usuais, retardando seu diagnóstico e colocando em sério risco a manutenção da vida, quanto mais a qualidade da mesma. Sem falar nos riscos cardiovasculares e nos efeitos neurológicos que vêm avançando em gravidade e fazem com que fique difícil engolir, de novo.
Estamos atravessando uma fase muito delicada da história da humanidade. As alterações climáticas que faziam parte de nosso imaginário e dos filmes de ficção científica, hoje são uma realidade e ainda não se sabe qual o impacto nos seres vivos de nosso planeta. Sabe-se, no entanto, que gerarão queda na produção de alimentos e bens, aumento da fome e das desigualdades sociais, recrudescimento de conflitos e guerras, tudo isso desaguando nos sistemas de saúde. A simultaneidade de epidemias como AIDS, tuberculose, hepatite C e aviária, esta já podendo ser avistada no horizonte nos fazem crer que os desafios irão aumentar, e muito.
Portanto, como diz o lema do Vivendo deste ano, promovido pelos Pela Vidda do Rio e Niterói: CHEGA DE LERO-LERO! Há que se fazer um Pacto pela Ética, onde esta seja representada pelos compromissos e interfaces de cada integrante desse sistema. Há que se ter um comprometimento maior com a ampliação de ações e estratégias, e não apenas a manutenção do que já foi conquistado. Que se ter agilidade nos processos de incorporação de novas estratégias de enfrentamento à epidemia. Que se fortaleça as interfaces com demais setores sociais e governamentais no enfrentamento à epidemia, fazendo com que a indústria, o comércio e os demais órgãos governamentais se aliem a esta luta de forma afirmativa, com incremento da responsabilidade e dotações orçamentárias garantindo esse incremento de ações na luta contra a AIDS. Que o conceito de ética seja transformado em realidade nas menores ações de todos nós nesse enfrentamento. E que Geni volte a ser apenas a musa maldita que sempre foi e não mais o sinônimo de ética na saúde pública.
A VOZ DAS PESSOAS VIVENDO COM HIV DEVE SER OUVIDA COM MAIOR COMPROMETIMENTO, TANTO DENTRO DOS CONSULTÓRIOS COMO EM TODAS AS INTERFACES PROVOCADAS PELA EPIDEMIA, QUE SE REINVENTA A CADA INSTANTE E PARA QUE SE TENHA UMA RESPOSTA RÁPIDA E EFICIENTE A NOSSA PERCEPÇÃO DOS NOVOS DESAFIOS DEVE SE ANTEPOR À EPIDEMIOLOGIA.
Tudo o que permeia o universo das verdades transitórias chamado AIDS tem como origem um vírus cuja principal característica é a capacidade de rever estratégias de forma imediata e atacar de forma cada vez mais insidiosa e desafiadora. Se nós, todos nós, não tivermos essa mesma capacidade, ele ganha a luta.
- Pai, hoje a professora deu uma aula estranha, não entendi nada. Ela falou sobre ética. O que é isso, papai?
Ao que o pai responde:
- Vou te dar um exemplo: imagine uma velha senhora, bem pobrezinha, que vem à nossa loja, faz uma compra de dez reais e, por engano, paga com uma nota de cinqüenta. Aí entra a ética, o papai conta pro sócio.
Nunca se falou tanto em ética em nosso país. É a Geni do momento: todos a desejam, todos a possuem. E em um momento eleitoral a classe política transforma essa veneração pela ética em uma espécie de epidemia. E não é somente a classe política, o discurso ético está presente também nos gestores públicos em saúde, nos laboratórios farmacêuticos, nos médicos e profissionais da área da saúde e do próprio movimento social. É a ética na saúde pública. O problema é que esse conceito muitas vezes se restringe a essa área mesmo, a conceitual.
Os interesses político-partidários fazem com que de dois em dois anos vivamos um festival de desastrosas indicações para cargos estratégicos dentro do SUS. Gestores públicos vivem às voltas com escândalos envolvendo aplicação de verbas em metas muitas vezes questionáveis através de processos e licitações muitas vezes suspeitas. Laboratórios farmacêuticos, especialmente os detentores de patentes, se opõem a uma visão de saúde pública mais equilibrada entre a questão humanitária e o lucro exigido pelos seus acionistas. Médicos e profissionais da área da saúde por vezes esquecem dos juramentos feitos em suas formaturas e tratam os clientes do SUS (também chamados de pacientes) de forma desrespeitosa e por vezes desumana, trazendo para sua prática o conceito “aidético”, onde a enfermidade se sobrepõe ao ser humano. E um movimento social que por vezes parece que esqueceu que, se temos um dos melhores programas de AIDS do mundo (alguns crêem que seja o melhor), esse foi conquistado pela força do ativismo. A chave para o sucesso do Programa Nacional de DST/AIDS é e sempre foi a participação cidadã, é o controle social exercido pelas pessoas vivendo com HIV e pelas ONGs que faz com que se implante, mantenha e avance em políticas públicas modernas e eficientes.
E a ética também está no lema do VI Congresso da Sociedade Brasileira de DST e II Congresso Brasileiro de AIDS, ocorrido em Santos de 17 a 20 últimos: “DST/AIDS no SUS: Compromisso e Interfaces”. A escolha do tema não poderia ter sido mais feliz, ainda mais quando temos para um futuro imediato a implantação do Pacto pela Saúde, que irá redimensionar as interfaces dentro do SUS e que necessitará, mais do que nunca, de comprometimento para que esse processo tenha êxito. Inclusive e principalmente do controle social, onde a força do ativismo seja a prioridade e não a mera execução de projetos e prestação de serviços para os gestores como tem se verificado como tendência, confundindo a atribuição de papéis de cada um dentro da resposta brasileira.
Vivemos cada qual em seu pequeno espaço dentro do amplo universo chamado AIDS no SUS e por vezes nos passam desapercebidos problemas específicos enfrentados pelos vários setores dessa estratégia. E os problemas são muitos, porém o principal deles é o conceito de que a AIDS tornou-se uma doença crônica, sob controle. Por conta disso temos uma queda significativa nas ações de prevenção por parte dos gestores municipais, onde a dificuldade encontrada para a contratação de agentes é a desculpa usual para a não execução de metas e acúmulo de verbas de incentivos sem resultados alcançados. Retrocesso que também assola a vida das pessoas vivendo com HIV, com a revogação ou criação de entraves para a plena garantia de direitos como de benefícios sociais e previdenciários, estes de forma sistemática e programada. O conceito de grupo de risco é novamente reforçado com a manutenção das restrições de doação de sangue pelos gays e outros HSH.
Quem esteve a par da Conferência da Sociedade Internacional de AIDS ocorrida ano passado no Rio de Janeiro ainda lembra que foi unânime a opinião de que sem transferência de tecnologia e produção local de medicamentos não será possível suprir a demanda mundial e equilibrar as relações entre capital e humanidade na prática de mercado e preços internacionais.. Vemos no Brasil nossas mulheres e nossos adolescentes cada vez mais vulneráveis à infecção, lembrando o quadro sombrio pintado na mesma Conferência onde foi relatado que em algumas regiões da África a população é exclusivamente masculina pois todas as mulheres haviam morrido e órfãos cantam em suas cantigas de roda o momento em que levaram os caixões dos pais para serem sepultados. E recentemente na Conferência de Toronto, foi reafirmada a existência de uma “super-infecção” em curso no mundo e que a mesma já estaria no Brasil, com prevalência de até 80% de vírus recombinantes em alguns serviços de saúde, sem que ainda se saiba ao certo que impacto trará para a assistência e para a expectativa de vida das pessoas afetadas.
No início da epidemia costumava-se ironizar dizendo, “ai que saudades da sífilis e da gonorréia”. Hoje, a ironia é “ai, que saudades do vômito e da diarréia”. Os efeitos colaterais têm se transformado em um pesadelo tanto para as pessoas vivendo com HIV como para os profissionais envolvidos em seu manejo. Em 1998 surgiu a lipodistrofia, para a qual a ciência deu sua pronta resposta com técnicas e alternativas para minimizar seu impacto, porém a resposta pública veio oficialmente apenas em 2004 com a publicação de portaria contendo uma série de procedimentos. E hoje, em 2006, ainda são muitas as dificuldades enfrentadas pelas pessoas vivendo com HIV em ter atendido apenas um de seus itens, o preenchimento facial. Casos de osteonecrose que estão sendo tratados à base de diclofenaco, afinal, são mais muito baratos do que próteses. Assistimos a uma verdadeira epidemia paralela de linfomas ocorrendo em perfis diversos dos usuais, retardando seu diagnóstico e colocando em sério risco a manutenção da vida, quanto mais a qualidade da mesma. Sem falar nos riscos cardiovasculares e nos efeitos neurológicos que vêm avançando em gravidade e fazem com que fique difícil engolir, de novo.
Estamos atravessando uma fase muito delicada da história da humanidade. As alterações climáticas que faziam parte de nosso imaginário e dos filmes de ficção científica, hoje são uma realidade e ainda não se sabe qual o impacto nos seres vivos de nosso planeta. Sabe-se, no entanto, que gerarão queda na produção de alimentos e bens, aumento da fome e das desigualdades sociais, recrudescimento de conflitos e guerras, tudo isso desaguando nos sistemas de saúde. A simultaneidade de epidemias como AIDS, tuberculose, hepatite C e aviária, esta já podendo ser avistada no horizonte nos fazem crer que os desafios irão aumentar, e muito.
Portanto, como diz o lema do Vivendo deste ano, promovido pelos Pela Vidda do Rio e Niterói: CHEGA DE LERO-LERO! Há que se fazer um Pacto pela Ética, onde esta seja representada pelos compromissos e interfaces de cada integrante desse sistema. Há que se ter um comprometimento maior com a ampliação de ações e estratégias, e não apenas a manutenção do que já foi conquistado. Que se ter agilidade nos processos de incorporação de novas estratégias de enfrentamento à epidemia. Que se fortaleça as interfaces com demais setores sociais e governamentais no enfrentamento à epidemia, fazendo com que a indústria, o comércio e os demais órgãos governamentais se aliem a esta luta de forma afirmativa, com incremento da responsabilidade e dotações orçamentárias garantindo esse incremento de ações na luta contra a AIDS. Que o conceito de ética seja transformado em realidade nas menores ações de todos nós nesse enfrentamento. E que Geni volte a ser apenas a musa maldita que sempre foi e não mais o sinônimo de ética na saúde pública.
A VOZ DAS PESSOAS VIVENDO COM HIV DEVE SER OUVIDA COM MAIOR COMPROMETIMENTO, TANTO DENTRO DOS CONSULTÓRIOS COMO EM TODAS AS INTERFACES PROVOCADAS PELA EPIDEMIA, QUE SE REINVENTA A CADA INSTANTE E PARA QUE SE TENHA UMA RESPOSTA RÁPIDA E EFICIENTE A NOSSA PERCEPÇÃO DOS NOVOS DESAFIOS DEVE SE ANTEPOR À EPIDEMIOLOGIA.
Tudo o que permeia o universo das verdades transitórias chamado AIDS tem como origem um vírus cuja principal característica é a capacidade de rever estratégias de forma imediata e atacar de forma cada vez mais insidiosa e desafiadora. Se nós, todos nós, não tivermos essa mesma capacidade, ele ganha a luta.
TÁ DIFÍCIL DE ENGOLIR. DE NOVO.
Novembro de 2004
Últma página da revista Infecto Atual, 2005
Foi, como tudo no universo das verdades transitórias que é a epidemia de AIDS, paradoxal o que se viu no 4ºCongresso Paulista de Infectologia realizado em Santos de 18 a 21 de agosto e que reuniu centenas de infectologistas de todo o estado. Paradoxal, pois foi assustador e um alento ao mesmo tempo.
Logo na abertura do congresso o Fórum de ONG/AIDS da Costa da Mata Atlântica e as pessoas vivendo com HIV deram seu recado ao se manifestar com faixas, cartazes e apitaço reivindicando algo que parece simples: humanização no atendimento, pactuação no tratamento e não imposição de remédios sem levar em consideração a realidade em que está vivendo aquele ser humano sentado à sua frente e maior atenção aos efeitos colaterais dos medicamentos.
Porém foi uma surpresa ver que a questão dos efeitos colaterais permeou diversas mesas e conferências e foi sensível a falta de intimidade de boa parte dos profissionais presentes ao evento. Por exemplo, a última aula foi ministrada por um cardiologista que durante cerca de quarenta minutos disse aos infectologistas presentes o que resumiu em sua frase final: “Ou os doutores passam a ter um olhar mais cuidadoso com relação aos efeitos colaterais ou muito em breve teremos uma invasão de pessoas vivendo com HIV nas clínicas de cardiologia.” E em outro momento do congresso um neurologista declarou em sua palestra que “... e pesquisas demonstraram que cerca de dez por cento das pessoas que vivem com HIV na Europa apresentam demência em maior ou menor grau”.
É estranho sentir alento a realidades tão duras e com reflexos tão contundentes na qualidade de vida das pessoas, mas ao menos essa realidade está saindo dos gabinetes e das conversas ao pé do ouvido para ganhar definitivamente congressos, debates e, principalmente, pesquisas. E trazendo a esperança de que essa visibilidade reverta em maior atenção a essas questões nas unidades de ponta, na hora em que o paciente estaria frente ao médico e este lhe perguntaria: “Como está a sua vida?”
Desde o final do século passado sabe-se que os efeitos colaterais são algo mais do que as velhas indisposições do trato gastrintestinal. Com o decorrer do tempo ficou evidente que eles estavam se manifestando de maneira cada vez mais severa e covarde. Alguns deles tão ou mais estigmatizantes do que o próprio fato de viver com HIV.
Acordar pela manhã e perceber que nosso rosto está cada dia mais magro, com as sombras provocadas pelo encovamento da face sob as luzes, observar que os membros estão se transformando em verdadeiras varetas a sustentar um tronco que não pára de crescer em uma inversa proporção ao restante do corpo tornando público um diagnóstico guardado em segredo a sete chaves. E até hoje não ver nenhuma ação prática tomada pelos responsáveis por políticas públicas voltadas à assistência, apesar do baixíssimo investimento que seria implantar equipes com professores de educação física, fonoaudiólogos e psicólogos, todos profissionais já existentes na rede pública e do alto retorno que seria a inclusão do preenchimento facial como procedimento do SUS, tanto do ponto de vista da adesão ao tratamento quanto àquele que é o mais importante: a qualidade de vida e auto-estima das pessoas que vivem com HIV.
Ouvir de amigos que estão com sua imunidade restabelecida e aparentemente saudáveis que não estão conseguindo se relacionar sexualmente pois os homens estão com disfunção erétil e as mulheres estão entrando em menopausa. Detalhe: esses amigos têm quarenta, trinta, por vezes até vinte anos de idade! E mesmo assim escutar de um renomado médico em um outro seminário que é normal uma pessoa acometida de moléstia tão grave perder o apetite sexual. Tudo bem. Mesmo que essa pessoa apresente exames de testosterona quase no zero? Na falta de respostas efetivas aparecem as “teorias oportunistas” quase tão daninhas quanto às próprias infecções oportunistas.
Disciplinas como ortopedia serem pegas de surpresa por casos de necrose óssea e osteoporose em pessoas sem os perfis tradicionais para tais intercorrências. Linfomas e outros tipos de cânceres aparecendo em organismos com imunidade normal. A confirmação da velha frase que diz “quanto mais se sabe em AIDS, menos se sabe em AIDS.”
Enfim, foi muito interessante ver que especialistas, curiosamente de outras disciplinas que não a infectologia, estão tendo o mesmo discurso há muito proferido pelos ativistas e principalmente pelas pessoas que vivem com HIV: os efeitos colaterais devem ter um tratamento em igual nível de prioridade que a adesão ao tratamento, mesmo porque um é intrinsecamente relacionado ao outro. Faltou ao congresso, para ficar próximo à perfeição, um espaço para troca de experiências entre profissionais e pacientes. Onde se poderiam debater clara e diretamente os problemas que estão afligindo as pessoas que vivem com HIV e, por que não, os próprios profissionais de saúde, reféns que somos dos limites da ciência. Parabéns à organização do 4º Congresso de Infectologia do Estado de SP pela abrangência e profundidade dos temas e por haver trazido à tona uma realidade perturbadora.
Estamos envelhecendo precocemente e ninguém está preparado para essa realidade. Claro, não se trata de parar com o tratamento. Não fosse ele, este artigo não existiria. Desde a primeira dose sabemos que somos cobaias e topamos encarar essa empreitada. E o que sempre nos deu força para continuar a lutar foi saber que a cada desafio que nos é proposto uma resposta é anunciada, um novo conhecimento é trazido à luz da ciência. Porém traduzir esse conhecimento em assistência integral é um processo demorado demais e isso está custando caro tanto ao SUS quanto a nós, que vivemos com HIV. Quando não está custando vidas.
Em outras palavras, tá difícil de engolir. De novo.
Logo na abertura do congresso o Fórum de ONG/AIDS da Costa da Mata Atlântica e as pessoas vivendo com HIV deram seu recado ao se manifestar com faixas, cartazes e apitaço reivindicando algo que parece simples: humanização no atendimento, pactuação no tratamento e não imposição de remédios sem levar em consideração a realidade em que está vivendo aquele ser humano sentado à sua frente e maior atenção aos efeitos colaterais dos medicamentos.
Porém foi uma surpresa ver que a questão dos efeitos colaterais permeou diversas mesas e conferências e foi sensível a falta de intimidade de boa parte dos profissionais presentes ao evento. Por exemplo, a última aula foi ministrada por um cardiologista que durante cerca de quarenta minutos disse aos infectologistas presentes o que resumiu em sua frase final: “Ou os doutores passam a ter um olhar mais cuidadoso com relação aos efeitos colaterais ou muito em breve teremos uma invasão de pessoas vivendo com HIV nas clínicas de cardiologia.” E em outro momento do congresso um neurologista declarou em sua palestra que “... e pesquisas demonstraram que cerca de dez por cento das pessoas que vivem com HIV na Europa apresentam demência em maior ou menor grau”.
É estranho sentir alento a realidades tão duras e com reflexos tão contundentes na qualidade de vida das pessoas, mas ao menos essa realidade está saindo dos gabinetes e das conversas ao pé do ouvido para ganhar definitivamente congressos, debates e, principalmente, pesquisas. E trazendo a esperança de que essa visibilidade reverta em maior atenção a essas questões nas unidades de ponta, na hora em que o paciente estaria frente ao médico e este lhe perguntaria: “Como está a sua vida?”
Desde o final do século passado sabe-se que os efeitos colaterais são algo mais do que as velhas indisposições do trato gastrintestinal. Com o decorrer do tempo ficou evidente que eles estavam se manifestando de maneira cada vez mais severa e covarde. Alguns deles tão ou mais estigmatizantes do que o próprio fato de viver com HIV.
Acordar pela manhã e perceber que nosso rosto está cada dia mais magro, com as sombras provocadas pelo encovamento da face sob as luzes, observar que os membros estão se transformando em verdadeiras varetas a sustentar um tronco que não pára de crescer em uma inversa proporção ao restante do corpo tornando público um diagnóstico guardado em segredo a sete chaves. E até hoje não ver nenhuma ação prática tomada pelos responsáveis por políticas públicas voltadas à assistência, apesar do baixíssimo investimento que seria implantar equipes com professores de educação física, fonoaudiólogos e psicólogos, todos profissionais já existentes na rede pública e do alto retorno que seria a inclusão do preenchimento facial como procedimento do SUS, tanto do ponto de vista da adesão ao tratamento quanto àquele que é o mais importante: a qualidade de vida e auto-estima das pessoas que vivem com HIV.
Ouvir de amigos que estão com sua imunidade restabelecida e aparentemente saudáveis que não estão conseguindo se relacionar sexualmente pois os homens estão com disfunção erétil e as mulheres estão entrando em menopausa. Detalhe: esses amigos têm quarenta, trinta, por vezes até vinte anos de idade! E mesmo assim escutar de um renomado médico em um outro seminário que é normal uma pessoa acometida de moléstia tão grave perder o apetite sexual. Tudo bem. Mesmo que essa pessoa apresente exames de testosterona quase no zero? Na falta de respostas efetivas aparecem as “teorias oportunistas” quase tão daninhas quanto às próprias infecções oportunistas.
Disciplinas como ortopedia serem pegas de surpresa por casos de necrose óssea e osteoporose em pessoas sem os perfis tradicionais para tais intercorrências. Linfomas e outros tipos de cânceres aparecendo em organismos com imunidade normal. A confirmação da velha frase que diz “quanto mais se sabe em AIDS, menos se sabe em AIDS.”
Enfim, foi muito interessante ver que especialistas, curiosamente de outras disciplinas que não a infectologia, estão tendo o mesmo discurso há muito proferido pelos ativistas e principalmente pelas pessoas que vivem com HIV: os efeitos colaterais devem ter um tratamento em igual nível de prioridade que a adesão ao tratamento, mesmo porque um é intrinsecamente relacionado ao outro. Faltou ao congresso, para ficar próximo à perfeição, um espaço para troca de experiências entre profissionais e pacientes. Onde se poderiam debater clara e diretamente os problemas que estão afligindo as pessoas que vivem com HIV e, por que não, os próprios profissionais de saúde, reféns que somos dos limites da ciência. Parabéns à organização do 4º Congresso de Infectologia do Estado de SP pela abrangência e profundidade dos temas e por haver trazido à tona uma realidade perturbadora.
Estamos envelhecendo precocemente e ninguém está preparado para essa realidade. Claro, não se trata de parar com o tratamento. Não fosse ele, este artigo não existiria. Desde a primeira dose sabemos que somos cobaias e topamos encarar essa empreitada. E o que sempre nos deu força para continuar a lutar foi saber que a cada desafio que nos é proposto uma resposta é anunciada, um novo conhecimento é trazido à luz da ciência. Porém traduzir esse conhecimento em assistência integral é um processo demorado demais e isso está custando caro tanto ao SUS quanto a nós, que vivemos com HIV. Quando não está custando vidas.
Em outras palavras, tá difícil de engolir. De novo.
A FESTA DO ADVOCACY
NOS DIREITOS HUMANOS
Julho de 2004
IX Conferência Nacional de Direitos Humanos, realizada de 29 de junho a 02 de julho no plenário Nereu Ramos da Câmara dos Deputados foi a festa do advocacy. Interessante notar que essa festa foi patrocinada e incentivada pela própria organização da Conferencia, mesmo não tendo sido essa sua prioritária intenção.
Desde as conferências regionais, passando pelas estaduais e culminando na nacional, duas foram as características que as marcaram: a forma impositiva com que um Texto Base para a implantação do Sistema Nacional de Direitos Humanos foi apresentado para reformulações e a desorganização das conferências, o que resultou em uma articulação espontânea entre os diversos movimentos sociais lá presentes a ponto de se ter uma verdadeira insurreição contra os métodos e diretrizes que visavam a implantação do SNDH. Já nas estaduais esse modelo foi rejeitado por três conferências, dentre elas a de São Paulo que se recusou a emendar tal texto devido à exigüidade de tempo e à imposição do temário sem consultas aos delegados sobre suas inclinações e temas de identificação.
E na Nacional não foi diferente, onde o mesmo modelo foi utilizado gerando pressões da sociedade civil organizada para que as propostas específicas de cada segmento social fossem apresentadas, avaliadas e incluídas ou não nas prioridades do Sistema. O que aconteceu com uma reformulação do modelo da conferência no decorrer da mesma. A partir de então o que se viu foi um verdadeiro show de articulações e, principalmente, o fortalecimento do conceito da diversidade, ou seja, o princípio de que todos os segmentos sociais que sentem dificuldades no exercício de sua cidadania devem se articular para obter os seus direitos e fazer valer a cidadania da diferença, em pé de igualdade.
Nesse contexto vale ressaltar o papel dos delegados de três segmentos, o movimento de pessoas vivendo com HIV/AIDS, das prostitutas (assim elas declararam ser, sem o preciosismo de profissionais do sexo) e das organizações GLBT. Em plenárias paralelas essa articulação foi enfatizada como a prioritária estratégia a fim de que as propostas e resoluções fossem aprovadas. E foram. Todas as propostas, resoluções e moções apresentadas por pessoas vivendo com HIV/AIDS e GLBT foram contempladas em uma vitória do princípio de Priscila, a Rainha do Deserto: existe lugar para todos nesse mundo e ainda sobra espaço. Sendo que, com relação às propostas em HIV/AIDS na realidade eram direcionadas a pessoas vivendo com doenças crônicas e/ou degenerativas, em articulação com outros segmentos na área da saúde. Negros, mulheres, religiosidades, migrantes, deficientes, todos no mesmo barco fazendo valer seus posicionamentos.
As propostas e resoluções do movimento GLBT e prostitutas foram norteadas pelo programa federal Brasil sem Homofobia, ressaltando a necessidade de destinação orçamentária para que esse mesmo programa possa ser implantado em sua integralidade. As prostitutas teriam sua regulamentação profissional e campanhas para dar visibilidade de seus direitos enquanto cidadãs, tanto direcionadas à sociedade como um todo como a setores reacionários, como instituições religiosas.
No caso das pessoas vivendo com doenças crônicas e/ou degenerativas foram aprovadas propostas visando garantir a efetivação de equipes de prevenção nos municípios para uma educação continuada eficaz na prática de sexo mais seguro e redução de danos no uso de drogas e implante de silicone. Questões como a isenção tarifária no transporte coletivo e tarifas públicas, manutenção no meio social e campanhas visando sensibilizar a população com relação aos direitos das pessoas acometidas por tais patologias também estiveram presentes. Reavaliação da legislação previdenciária relativa à LOAS e descriminalização das drogas com criação de política de saúde pública de atenção integral ao usuário. Mas a grande tônica foi no sentido de garantir uma disponibilização universal, integral e igual a todas essas pessoas de exames de controle e, principalmente, de medicamentos, inclusive as terapias mais avançadas e as de combate a infecções oportunistas e aos efeitos colaterais. Para estes últimos foi destacada a necessidade de instrumentos (norma técnica ou resolução) para que ações práticas sejam tomadas para minimizar os agravos medicamentosos através de equipes multidisciplinares e pactuação médico/paciente com relação aos referidos efeitos. Para tal foi aprovada moção de recomendação à Coordenação Nacional e Estaduais além de moção de repúdio à Secretaria de Saúde do município de Santos pelo recente falecimento de paciente pelo não fornecimento de medicamento através de ordem judicial para aquisição.
Em resumo: houve avanços, com certeza. Há que se ressaltar a intenção positiva do governo federal em implantar um Sistema Nacional onde todas as instâncias governamentais e setores da sociedade civil estejam interligados e atuando de maneira coordenada para fazer valer o principal papel do Estado, que os direitos do cidadão sejam resguardados, sejam eles na área de saúde, social ou quaisquer que sejam eles, desde que oriundos de seus próprios movimentos.
O que se espera é que daqui a dois anos, quando da X Conferência Nacional de Direitos Humanos, tenhamos um sistema justo implantado, baseado em pauta elaborada pelos segmentos sociais e não por órgãos governamentais. e deixando claro ao governo que não é ele quem direciona os movimentos populares, pelo contrário, os movimentos populares que devem direcionar o governo e suas prioridades. Sempre, qualquer que seja o governo.
Desde as conferências regionais, passando pelas estaduais e culminando na nacional, duas foram as características que as marcaram: a forma impositiva com que um Texto Base para a implantação do Sistema Nacional de Direitos Humanos foi apresentado para reformulações e a desorganização das conferências, o que resultou em uma articulação espontânea entre os diversos movimentos sociais lá presentes a ponto de se ter uma verdadeira insurreição contra os métodos e diretrizes que visavam a implantação do SNDH. Já nas estaduais esse modelo foi rejeitado por três conferências, dentre elas a de São Paulo que se recusou a emendar tal texto devido à exigüidade de tempo e à imposição do temário sem consultas aos delegados sobre suas inclinações e temas de identificação.
E na Nacional não foi diferente, onde o mesmo modelo foi utilizado gerando pressões da sociedade civil organizada para que as propostas específicas de cada segmento social fossem apresentadas, avaliadas e incluídas ou não nas prioridades do Sistema. O que aconteceu com uma reformulação do modelo da conferência no decorrer da mesma. A partir de então o que se viu foi um verdadeiro show de articulações e, principalmente, o fortalecimento do conceito da diversidade, ou seja, o princípio de que todos os segmentos sociais que sentem dificuldades no exercício de sua cidadania devem se articular para obter os seus direitos e fazer valer a cidadania da diferença, em pé de igualdade.
Nesse contexto vale ressaltar o papel dos delegados de três segmentos, o movimento de pessoas vivendo com HIV/AIDS, das prostitutas (assim elas declararam ser, sem o preciosismo de profissionais do sexo) e das organizações GLBT. Em plenárias paralelas essa articulação foi enfatizada como a prioritária estratégia a fim de que as propostas e resoluções fossem aprovadas. E foram. Todas as propostas, resoluções e moções apresentadas por pessoas vivendo com HIV/AIDS e GLBT foram contempladas em uma vitória do princípio de Priscila, a Rainha do Deserto: existe lugar para todos nesse mundo e ainda sobra espaço. Sendo que, com relação às propostas em HIV/AIDS na realidade eram direcionadas a pessoas vivendo com doenças crônicas e/ou degenerativas, em articulação com outros segmentos na área da saúde. Negros, mulheres, religiosidades, migrantes, deficientes, todos no mesmo barco fazendo valer seus posicionamentos.
As propostas e resoluções do movimento GLBT e prostitutas foram norteadas pelo programa federal Brasil sem Homofobia, ressaltando a necessidade de destinação orçamentária para que esse mesmo programa possa ser implantado em sua integralidade. As prostitutas teriam sua regulamentação profissional e campanhas para dar visibilidade de seus direitos enquanto cidadãs, tanto direcionadas à sociedade como um todo como a setores reacionários, como instituições religiosas.
No caso das pessoas vivendo com doenças crônicas e/ou degenerativas foram aprovadas propostas visando garantir a efetivação de equipes de prevenção nos municípios para uma educação continuada eficaz na prática de sexo mais seguro e redução de danos no uso de drogas e implante de silicone. Questões como a isenção tarifária no transporte coletivo e tarifas públicas, manutenção no meio social e campanhas visando sensibilizar a população com relação aos direitos das pessoas acometidas por tais patologias também estiveram presentes. Reavaliação da legislação previdenciária relativa à LOAS e descriminalização das drogas com criação de política de saúde pública de atenção integral ao usuário. Mas a grande tônica foi no sentido de garantir uma disponibilização universal, integral e igual a todas essas pessoas de exames de controle e, principalmente, de medicamentos, inclusive as terapias mais avançadas e as de combate a infecções oportunistas e aos efeitos colaterais. Para estes últimos foi destacada a necessidade de instrumentos (norma técnica ou resolução) para que ações práticas sejam tomadas para minimizar os agravos medicamentosos através de equipes multidisciplinares e pactuação médico/paciente com relação aos referidos efeitos. Para tal foi aprovada moção de recomendação à Coordenação Nacional e Estaduais além de moção de repúdio à Secretaria de Saúde do município de Santos pelo recente falecimento de paciente pelo não fornecimento de medicamento através de ordem judicial para aquisição.
Em resumo: houve avanços, com certeza. Há que se ressaltar a intenção positiva do governo federal em implantar um Sistema Nacional onde todas as instâncias governamentais e setores da sociedade civil estejam interligados e atuando de maneira coordenada para fazer valer o principal papel do Estado, que os direitos do cidadão sejam resguardados, sejam eles na área de saúde, social ou quaisquer que sejam eles, desde que oriundos de seus próprios movimentos.
O que se espera é que daqui a dois anos, quando da X Conferência Nacional de Direitos Humanos, tenhamos um sistema justo implantado, baseado em pauta elaborada pelos segmentos sociais e não por órgãos governamentais. e deixando claro ao governo que não é ele quem direciona os movimentos populares, pelo contrário, os movimentos populares que devem direcionar o governo e suas prioridades. Sempre, qualquer que seja o governo.
TERMINAL É A ...!!!
Outubro de 2004
Como pode um efeito colateral ser tão devastador? Como pode ele mudar a direção de toda uma vida sem que a gente possa fazer algo para contorná-lo, evitar que ele tome conta de todo nosso corpo e mente? Poderia estar falando sobre lipodistrofia, necrose óssea.... ou os velhos e já batidos enjôos e desarranjos intestinais (adoro eufemismos)... quem sabe de desordens hormonais que nos colocam em situações que só nos imaginávamos daqui a algumas décadas. Mas não. Estou falando sobre o efeito colateral que arrebata, que praticamente lhe tira as opções: a sede pela vida. A garra em superar os obstáculos e acreditar que não basta estar vivo, é preciso viver e bem. E o que seria o viver bem? Bem, tudo começou quando 1989, uma boa safra, trouxe sonhos premonitórios e um exame cujo resultado já era esperado: reagente. Engraçado como um resultado de exame deveria ser uma palavra de ordem: REAJA!!! E como é difícil aceitar esse comando, reagir diante do que, na época, era um atestado de óbito expedido em vida. Mas acaba-se aceitando o comando, não há outra saída. É reagir ou reagir.
E a brincadeira estava apenas começando. A montanha russa onde eu houvera embarcado ainda me reservava muitas subidas e descidas, muitos loopings e algumas ameaças de descarrilamento. Semanas? Meses? Anos? Ninguém sabia precisar nada na época, o que fazer? Claro, licenciar-me do serviço, sacar o FGTS e curtir a vida ou o que me restava dela. E assim se passaram sete anos de muito sexo, drogas e Jericoacoara, Trancoso e sempre com a maldita sensação de que poderia ser a última trepada, a última cheirada, a última viagem a um desconhecido paraíso tropical. Os demônios adoram fazer festas em nossa cabeça quando a pousamos no travesseiro. Mas eu sempre tive aquela discreta certeza que não seria por causa de um bichinho pequeno e covarde que eu morreria. Claro, com tanto desgaste físico e adições químicas em ´96 vieram os problemas, as inoportunas oportunistas. De 68 para 34 quilos e ainda contando piadas pras enfermeiras. Credo, eu pesava meus ossos e órgãos com isso!!! E o pior de tudo: o olhar da mãe já sem aquele brilho de esperança que era o tênue fio que me segurava por aqui. E, desafiando as desafiadoras previsões de que um tratamento eficaz seria para o século 21, chegou o coquetel e uma recuperação lenta, gradual e progressiva, como já foi dito por um ditador. Como diria o seu Creysson, “os seus pobremas se acabaram-se!!!” tsc, tsc..
Ah, tem efeito colateral, né? Huumm.. vômitos, diarréias... enjôos. Ah, dá pra levar. Só que as pernas e braços foram afinando e o rosto encovado de uma hora para outra. E eu comendo e malhando, comendo e malhando... e o rosto sendo sugado a olhos vistos. E foi no Vivendo de 98, no Rio, onde fui formalmente apresentado à sra. Lipodistrofia. Que coisa, não era só indisposição? Mas foi ali, naquele Vivendo, que começou a se manifestar o maior efeito colateral de todos que tive até agora: a tal reação, que me havia sido comandada nos primórdios e que somente agora se fazia sentir. Após ter levado altos papos com aquele espectro que costuma ficar aos pés de meu leito nos hospitais e por ele ter sido poupado (após ter sido considerado “paciente terminal”) é que fui começar a juntar pequenas idéias que antes eram apenas devaneios e decidi procurar algo para fazer contra esse monstrinho que quase me levara. Simultaneamente a tudo isso eu conhecera uma pessoa que definitivamente iria influenciar minha vida daí pra frente, Bia, conhecida pelos íntimos como Beatriz Pacheco. Ela foi a pessoa que fez com que essas pequenas idéias fossem tomando corpo. Tornei-me voluntário em algumas instituições, mas sabia que o buraco era mais embaixo. Foi quando procurei o SAE de São Vicente, onde funcionava um grupo de auto-ajuda, no qual me inseri. Como eu falo pouco, sou extremamente tímido (meus amigos são prova disso!!!) e sempre tinha novidades que colhia na Internet algo de novo começou a acontecer ali, lugar onde as pessoas mal se falavam, quando muito se entreolhavam. Falava-se de união, de direitos, de... ONG! Sim, por que não fundar uma ONG, já que São Vicente não tinha nenhuma? E assim um novo monstro invadiu minha alma e mudou completamente o rumo de minha vida: o Hipupiara (ver significado em www.hipupiara.org.br ). E no apagar das luzes do século XX o monstro que assolara minha cidade nos idos do século XVI veio para devastar toda a leviandade e, por que não?, mediocridade em que eu vivia e dar sentido ao fato de estar aqui, Vivendo.
Hoje posso dizer que vivo a melhor e mais plena fase de toda a minha vida. Não que esteja um primor, os novos efeitos colaterais e novidades continuaram a se apresentar, um após o outro: osteoporose (com direito a fratura de fêmur), osteonecrose, desordens hormonais (o famoso “nunca aconteceu comigo antes...”) e um recém diagnosticado câncer no sistema linfático. Mas você ter tido a oportunidade de ver a luz, sem ser Caroline, e passar a ver a sua vida por um outro ponto de vista, outras perspectivas é, de longe o maior e melhor dos efeitos colaterais que sofri: a tal da sede. A sede de viver e viver bem. E querer e poder fazer algo para que todos vivam essa experiência divina que é REAGIR.