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Sou muito humorado. Se bem ou mal, depende da situação...

Em 1989 o HIV invadiu meu organismo e decretou minha morte em vida. Desde então, na minha recusa em morrer antes da hora, muito aconteceu. Abuso de drogas e consequentes caminhadas à beira do abismo, perda de muitos amigos e amigas, tratamentos experimentais e o rótulo de paciente terminal aos 35 quilos de idade. Ao mesmo tempo surgiu o Santo Graal, um coquetel de medicamentos que me mantém até hoje em condições de matar um leão e um tigre por dia, de dar suporte a meus pais que se tornaram idosos nesse tempo todo e de tentar contribuir com a luta contra essa epidemia que está sob controle.



Sob controle do vírus, naturalmente.



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Beto Volpe



sábado, 12 de fevereiro de 2011

ALGUNS BICHOS SÃO MAIS IGUAIS QUE OUTROS

Artigo escrito em março de 2009, ainda atualíssimo, baseado na obra ‘A Revolução dos Bichos’ de George Orwell.
Áudio descrição da imagem: porco trajando terno rindo demais para se tratar de algo honesto.







“Lembro-vos também de que na luta contra o Homem não devemos ser como ele. Mesmo quando o tenhais derrotado, evitai-lhe os vícios. Animal nenhum deve morar em casas, nem dormir em camas, nem usar roupas, nem beber álcool, nem fumar, nem tocar em dinheiro, nem comerciar. Todos os hábitos do Homem são maus. E, principalmente, jamais um animal deverá tiranizar outros animais. Fortes ou fracos, espertos ou simplórios, somos todos irmãos. Todos os animais são iguais.”George Orwell.

Este artigo é dedicado ao saudoso amigo e
companheiro de luta Sérgio Abreu que,
com certeza, está comprando brigas
em outras granjas por aí.
Com ética!

Havia uma granja. A Granja Brasillis. Nessa granja os bichos viviam suas vidas de bichos de granja, em uma tranqüilidade proporcionada por um clima abençoado por Deus e muito bonito por sua natureza. Cada bicho sabia seu lugar na harmonia da granja, determinado por suas características. Os porcos com sua astúcia e inteligência, hoje sabidamente comparável à dos chimpanzés, sempre se destacavam nas atividades sociais ao redor do cocho. As ovelhas e sua alienação que, ao invés de guardar silêncio, preferiam irritantemente balir ao nada para nada querer. Os cavalos, grandes trabalhadores, estavam sempre dispostos a arregaçar as inexistentes mangas e fazer sua parte. Muitas vezes faziam a dos outros, também. Trabalhadores também eram seus primos, os burros, porém com uma teimosia que fazia com que olhassem sempre com desconfiança para qualquer novidade que aparecesse pela granja. E, por fim, as vacas e os bois, fiéis seguidores das idéias dominantes (no que faziam coro às ovelhas), sempre dispostos a mudar de idéias e companhias para garantir os melhores bocados e iguarias. Todos diferentes. Mas felizes. Felizes e irmãos, onde todos tinham seu alimento, seu abrigo, seus amigos. Havia festas do alvorecer ao crepúsculo. Enfim, nessa diversidade os bichos viviam sossegados até...

Até que uma estranha doença começou a abater alguns de seus mais famosos e renomados moradores e a causar medo e dor entre todos eles, que assistiam horrorizados os seus ídolos definharem publicamente. O enorme porco detentor de premiações em exposições, o galo cantor que encantava todas as manhãs apresentando a alvorada, enfim, a doença parecia ter preferência por animais que se destacavam na granja, de alguma maneira. Mas a doença, antes de matar, alijava o animal das atividades da granja; todos os demais tinham horror a contrair o tal mal ainda tão desconhecido e se afastavam dos bichos doentes. Havia quem dissesse que o simples compartilhar de poleiro faria com que o mal fosse transmitido. O fato é que com o passar do tempo a doença já se espalhara entre os mais humildes moradores, entre os jovens franguinhos e até os animais mais velhos estavam sendo atacados pelo mal que os matava ainda vivos.

E a estranha epidemia assolava não somente aquela, mas todas as granjas, independentemente de sua riqueza ou localização. Os proprietários juntamente aos bancos e seguradoras com os quais trabalhavam perceberam que teriam que arregimentar fundos e traçar metas para enfrentar o problema que ameaçava seus investimentos. O mundo então se comoveu com a dramática situação dos bichos e foram realizadas Conferências Mundiais, governantes e empresas destinaram grandes importâncias para tentar conter o mal que se espalhava por várias granjas. Ao mesmo tempo foram surgindo grupos para atuar junto aos bichos que viviam com o problema na tentativa de amenizar o sofrimento desses e estancar a progressão do mal: as Organizações para a Normalização das Granjas, ONGs, formadas por técnicos que contribuíam com sua boa vontade e suas formações acadêmicas para enfrentar o problema que ameaçava sair do controle e extinguir toda a população das granjas. Nunca na história da Organização das Granjas Unidas tanto esforço e tanto dinheiro fora mobilizado para enfrentar um problema comum. No entanto...

No entanto a epidemia só fazia avançar, os esforços pareciam nada adiantar perante tamanho desafio. E os bichos já acometidos pelo problema perceberam, enfim, que os governantes e as ONGs não estavam dando conta de tamanho desafio e que a única alternativa seria assumir sua parte nessa luta. Os porcos, líderes natos, organizaram reuniões cada vez mais entusiasmadas, com as ovelhas balindo repetidamente palavras de ordem, os cavalos e as galinhas incentivando uns aos outros, bois e vacas engrossando as fileiras e os burros... Esses estavam preocupados, acreditavam que o trabalho das ONGs já era suficiente e que eles deveriam cuidar mais da própria saúde. Enfim os bichos, em um dia de muito júbilo em uma granja do interior fundaram a Rede Nacional de Bichos Vivendo com o Problema, a RNB+. E escreveram na parede central da granja a síntese de sua Carta dos Bichos:

‘TODOS OS BICHOS SÃO IGUAIS’

E festejaram a conquista, entoando cânticos e palavras de ordem como ‘Queremos a cura, já!’ ou ‘Forração para todos’. Sim, houve um avanço científico. Ao mesmo tempo em que os bichos resolveram se organizar a ciência havia descoberto um coquetel de forrações que impedia o desenvolvimento da doença na maioria dos bichos. Os governantes da Granja Brasillis distribuíam o coquetel de forrações aos bichos que necessitavam de tratamento e, num equívoco de general de primeira guerra, alguns setores do governo e da ciência declararam que o Problema havia se tornado crônico e estaria sob controle.

Porém e apesar de todos os esforços, cada vez mais animais sucumbiam e as economias cada vez mais se ressentiam com seu impacto. Foi quando os bichos perceberam que algumas organizações estavam mais interessadas em avanços pessoais, profissionais e acadêmicos do que nas metas adotadas, quando não pelo dinheiro que corria solto para financiar as ações que visassem estancar a epidemia. Alguns bichos que haviam se destacado na luta contra as desigualdades, afinal todos os bichos são iguais, já haviam se desligado da Rede, indo para algumas ONGs e mesmo para setores do governo. Muitos deles seguindo sérios ideais e propostas de poder fazer a diferença por outros meios, mantendo o reconhecimento dos outros bichos, conquistado durante a época onde poucos ousavam desnudar em público a própria condição. Outros, porém, haviam sido simplesmente seduzidos por vantagens financeiras, de poder ou, alguns, de puro brilho. Da nulidade de suas vidas pregressas à oportunidade de serem vistos e reconhecidos como bichos sociais. Mesmo que isso representasse uma dificuldade a mais na já tão árdua luta para os bichos que viviam com o problema. Que estavam enfrentando novos e tremendos desafios. O coquetel de forrações, que havia provado sua eficácia e com isso enriquecido seus produtores e alguns intermediadores, também tinha seus efeitos colaterais. Bovinos mal conseguiam andar tamanho o crescimento de seus úberes e de seus cupins. Cavalos tendo seus cascos necrosados e até mesmo o garanhão não desempenhava seu papel como antigamente. E o crescente número de casos de cânceres em penas, cloacas, chifres e rabos. Havia outros tipos de doenças também se alastrando, fazendo com que a vida na Granja Brasillis ficasse cada vez mais complicada. E a dos bichos vivendo com o problema se tornasse ainda mais assustadora e imprevisível.

Ao mesmo tempo a Rede de Bichos Vivendo com o Problema se deparava com seu mais novo desafio: a própria diversidade que a compunha. Porcos, cavalos, ovelhas, vacas, burros, galinhas, jovens e velhos, machos e fêmeas, alguns acometidos pela doença, outros somente portando o mal que a causava, muitos carregando seqüelas de suas manifestações. Existiam também os corvos, que apareciam somente em épocas de encontros e eleições. Era necessário equacionar tantas diferenças. Era necessário um guia de comportamentos, um código de ética. Outra necessidade era a de aproximação dos bichos, afinal as distâncias eram enormes na Granja Brasillis. E havia a tecnologia da Interpet que poderia fazer essa aproximação. Os burros foram os primeiros a se opor, alegando que os bichos não eram da polícia para controlar uns aos outros e que essa coisa de Interpet não havia sido feita para todos os bichos. Os porcos, cuja astúcia já foi mencionada, concordaram com os burros e as coisas continuaram como estavam.

Com o crescente reconhecimento da importância da Rede de Bichos pelos mais diversos setores governamentais ou não, esta obtinha financiamentos de vulto e, apesar de pecar em algumas prestações de contas e na transparência de algumas ações, continuava a receber o aval governamental tamanha sua relevância na luta contra o problema. E esse tipo de prática começou a se tornar freqüente, até que começaram a estourar pequenos escândalos em granjas distantes por irregularidades na utilização de recursos. A imprensa começava a noticiar que Bichos Vivendo com o Problema estariam se locupletando de verbas públicas. Os porcos, agora confirmados nas lideranças do movimento dos bichos, fizeram vistas grossas, afirmaram que eram casos pontuais e que a Justiça daria conta do assunto. As ovelhas baliam sem cessar: ‘Quebra de Patentes, Jáááá!’. E, alheios às ameaças externas, os bichos começaram a verificar outro fenômeno entre eles: já não mais eram tão irmãos assim. Já se reparava mais nas diferenças entre si do que nas afinidades que outrora os unira. A única coisa que os unia agora era o Problema em si.

Até que um dia, na propriedade mais rica da Granja Brasillis, e também a que contava com o maior número de bichos com o problema, o colegiado dos bichos se reuniu e decidiu que seria mais fácil administrar a luta contra o problema se eles também se tornassem uma Organização para a Normalização das Granjas, uma ONG. Teriam maior independência para apresentação de projetos para financiamento das ações necessárias e outras providências. Só que havia dois problemas: seus cargos de representação não davam direito a decisões, apenas intermediações e operacionalizações. A Carta dos Bichos dizia claramente que TODOS OS BICHOS SÃO IGUAIS, ou seja, as decisões importantes deveriam ser apreciadas por todos os habitantes da granja. E, como os próprios burros e porcos haviam boicotado as consultas via Interpet, estava estabelecido o impasse. Foi assim que, no dia seguinte, o artigo máximo da Carta dos Bichos aparecera alterado na parede principal da granja:

TODOS OS BICHOS SÃO IGUAIS,
MAS ALGUNS SÃO MAIS IGUAIS QUE OUTROS.’

Boa parte dos bichos não atentou para a mudança de paradigma que essa alteração provocaria. A partir daquele dia os ideais de igualdade que eram a expressão da Rede de Bichos haviam se partido, mas a maioria dos bichos sequer se questionou. Outros acharam mais cômodo se omitir, sendo que alguns líderes de outras granjas parabenizaram a iniciativa como inovadora e necessária. Até mesmo o representante dos bichos no Conselho Nacional das Granjas cobriu os ‘companheiros’ com os maiores elogios.

Eles haviam perdido sua capacidade de ter olhar crítico e passaram a aceitar conveniências como expressões da verdade. Passaram a aceitar mudanças na história passada para justificar uma nova leitura do presente. E, assim, construir um futuro baseado nos ideais que a Rede Nacional de Bichos Vivendo com o Problema nascera para enfrentar.
Pobres bichos, não atentaram que haviam se tornado, eles próprios, parte do problema.

Beto Volpe

George Orwell, escritor, jornalista e militante político, foi perseguido junto a anarquistas e outros comunistas. Desencantado com o governo de Stalin, escreveu “A Revolução dos Bichos” em 1944. Nenhum editor aceitou publicar a sátira política, pois, na época, Stalin era aliado da Inglaterra e dos Estados Unidos. Só após o término da guerra, em 1945, é que o livro foi publicado e se tornou um sucesso editorial.

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